Entenda o Autismo

Assessoria de inclusão: Uma proposta de educação estruturante na prevenção do Autismo


A assessoria de inclusão: uma proposta de educação estruturante na prevenção do autismo

 

The inclusion advice: a proposal for structuring education the prevention of autism

 

La asesoría de inclusión: una propuesta de educación estructurante en la prevención del autismo

 

 

RESUMO 

Este artigo trata de refletir a posição discursiva de semblante dos educadores e de sua Assessoria de Inclusão na prevenção do autismo nas escolas infantis municipais de (oculto). Trata-se de relatar uma experiência da Assessoria de inclusão da Educação Precoce e Psicopedagogia Inicial, na Secretaria Municipal (oculto) denominado Educação Estruturante, incluída em uma pesquisa de Mestrado. Estes escritos propõem compreender como e que laços discursivos estabelecidos entre crianças, educadores e Assessoria podem ter contribuído para a não fixação do autismo em duas crianças observadas quando bebês e aos seus três anos de idade. A leitura foi no sentido de pensarmos a prevenção como forma de intervenção e detecção de sinais de autismo, tomada nos giros discursivos e criação de atividades estruturantes do educador e em interlocução com a assessoria de Inclusão EP/PI. Consideramos no final da pesquisa, que as crianças da pesquisa saíram do risco do autismo, através da intervenção, desejo e transferência que se estabeleceu entre educadores e crianças, bem como no que rebermorou nestes, das noções formativas da Assessoria de Inclusão denominada Educação estruturante. 

 

Palavras-chave: Assessoria de Inclusão; Educação Infantil; Autismo.

 

ABSTRACT 

This article tries to reflect the discursive position of the educators' countenance and their Advising of Inclusion in the prevention of Autism in the municipal schools of (hidden). It is to report an experience of the Advisory Office for Inclusion of Early Education and Initial Psychopedagogy, in the Municipal Secretariat (hidden) called Structure Education, included in a Master's research. These writings propose to understand how and what discursive bonds established between children, educators and Counseling may have contributed to the non-fixation of autism in two children observed when infants and their three years of age. The reading was in the sense of thinking about prevention as a form of intervention and detection of signs of autism, taken in the discursive turns and creation of structuring activities of the educator and in dialogue with the counseling of Inclusion EP / PI. 

We considered at the end of the research, that the children of the research came out of the risk of Autism, through the intervention, desire and transfer that was established between educators and children, as well as in what rebermorou in these, the formative notions of the Counseling of Inclusion denominated Structuring Education.

 

Keywords: Inclusion Counseling; Child education; Autism.

 

RESUMEN 

Este artículo trata de reflejar la posición discursiva de semblante de los educadores y de su Asesoría de Inclusión en la prevención del Autismo en las escuelas infantiles municipales de (oculto). Se trata de relatar una experiencia de la Asesoría de inclusión de la Educación Precoz y Psicopedagogía Inicial, en la Secretaría Municipal (oculto) denominado Educación Estructurante, incluida en una investigación de Maestría. Estos escritos proponen comprender cómo y qué vínculos discursivos establecidos entre niños, educadores y Asesoría pueden haber contribuido a la no fijación del autismo en dos niños observados cuando los bebés y sus tres años de edad. La lectura fue en el sentido de pensar la prevención como forma de intervención y detección de signos de autismo, tomada en los giros discursivos y creación de actividades estructurantes del educador y en interlocución con la asesoría de Inclusión EP / PI. Consideramos al final de la investigación, que los niños de la investigación salieron del riesgo del Autismo, a través de la intervención, deseo y transferencia que se estableció entre educadores y niños, así como en lo que reabrió en ellos, de las nociones formativas de la Asesoría de Inclusión denominada Educación Estructurante.

 

Palabras clave: Asesoría de Inclusión; Educación Infantil; Autismo.

 

 

Introdução

 

Este escrito é fruto de uma experiência que se iniciou na década de 1990 quando um grupo de profissionais começou a realizar atendimentos de Educação Precoce  (EP) e Psicopedagogia Inicial  (PI) e, posteriormente, implementaram uma Assessoria de Inclusão aos Educadores das Escolas Municipais de Educação Infantil através da Educação Estruturante (Oculto).  A Educação Estruturante é um paradigma que propõe ao educador dirigir seu olhar aos aspectos diacrônicos da criança – os do desenvolvimento como um todo –, bem como considerar o tempo sincrônico da criança – a sua estruturação psíquica, cognitiva, neurológica e a articulação com o desejo. Enfatiza a importância de atentar, nos planejamentos educativos, ao desenvolvimento e à singularidade de cada criança na relação com o grupo. Esse trabalho contribuiu para que, cada vez mais cedo, os bebês com sinais de autismo e transtornos no desenvolvimento chegassem às escolas infantis de Porto Alegre. Nesse rumo, as noções de detecção e inclusão foram lançadas pela Assessoria como proposta de instrumentalizar, escutar e intervir nesse campo educacional, com a intenção de se detectar precocemente sinais de autismo, como exclusão do outro (Jerusalinsky, 1999) ou de atrasos no desenvolvimento dos alunos da educação infantil.

 A pesquisa  que, neste escrito, será apresentada teve como objetivo refletir sobre as potencialidades constitutivas dos atos educativos de educadores de escola infantil com duas crianças pequenas que, quando bebês, apresentaram sinais de autismo. Esses educadores foram acompanhados pela Assessoria de Inclusão (EP/PI)  através da Educação Estruturante (Oculto) e depois entrevistados e observados, quando as crianças tinham seus três anos de idade. 

 

As etapas da pesquisa

 

Esta pesquisa veio se delineando desde 1991, momento em que a primeira autora deste escrito assumiu o cargo de Pedagoga Especial para deficientes mentais na Secretaria Municipal de Educação (Oculto). A partir do ingresso no município, foi sendo introduzido o trabalho de EP/PI e, em 2015, com o ingresso no mestrado, foi possível que a experiência de trabalho na Assessoria de Inclusão a educadores de escolas infantis – através da Educação Estruturante –, pudesse ser formalizada. Então, esta pesquisa participa de um ir e vir dos tempos cronológicos, mas também lógicos, em que os fios da experiência foram sendo tecidos em palavras. Assim, podemos falar em três momentos que este escrito se debruça.

O tempo 1 foi o ingresso da primeira autora do texto no campo da Assessoria, ou seja, inicia na década de 1990. Nesse percorrido, a autora observou vários giros dos educadores em suas posições discursivas de semblante, visto que os educadores, ao serem escutados pela Assessoria, autorizavam-se a fazer funções diversas com as crianças em sofrimento psíquico e atrasos no desenvolvimento. O tempo 2 – berçário – foi considerado o momento em que dois bebês da escola João Alhures  apresentaram sinais de autismo e o consequente trabalho de Assessoria aos educadores que cuidavam desses bebês. Transcorridos dois anos, chegamos ao tempo 3 – maternal –, tempo do ingresso no Mestrado da primeira autora, em que o desejo foi pensar no trabalho de Assessoria de Inclusão (EP/PI) e na potencialidade dos atos educativos para a constituição do sujeito. Para isso, no tempo 3, avaliaram-se as duas crianças que tinham sido acompanhadas, no berçário, em Assessoria, por terem apresentado sinais de risco de autismo. Então, o tempo 3 se desdobrou na observação e interação com as crianças nos diferentes ambientes da escola; avaliação das duas crianças que, quando bebês, apresentaram sinais de autismo; e entrevistas com as educadoras que acompanharam essas crianças no berçário e no maternal. 

As crianças foram avaliadas com a Avaliação Psicanalítica aos três anos (AP3) (Kupfer et al., 2008) a fim de observar se ainda apresentavam sinais de autismo. A entrevista com os educadores foi realizada a fim de compreender como e quais laços discursivos estabelecidos entre eles e os bebês poderiam ter contribuído para a não fixação dessa estrutura psíquica denominada autismo. Esse percorrido temporal tenta refletir a Assessoria de Inclusão aos educadores infantis que trabalham com bebês e crianças pequenas em sofrimento psíquico. A questão do trabalho foi: será que a posição discursiva de semblante do educador – enquanto desdobramento das funções materna, paterna, pedagógica e até, algumas vezes, terapêutica – poderia recobrir o Real das repetições e exclusões de crianças com sinais de autismo?

 

A pesquisa e sua metodologia

 

Tratou-se de uma pesquisa de caráter qualitativo e sustentada na Psicanálise. Nesse sentido, foi fundamental o debate da Psicanálise com outros campos de saber, como estratégia científica e política, ao se inserir na Educação Infantil, uma vez que se tomou aqui o contexto teórico-investigativo em uma leitura sobre as posições discursivas de semblante que os educadores ocuparam com as crianças na rotina da escola infantil.

Considerando que a pesquisa foi realizada no a posteriori do tempo da criação da Assessoria de inclusão norteada pela Educação Estruturante, da detecção de risco de autismo em dois bebês, Manu e Leopoldo , do assessoramento às suas educadoras, da avaliação desses bebês quando completaram três anos e da entrevista às educadoras que cuidaram dessas crianças, utilizamo-nos de um balizador de pesquisa: o entre. A relevância dada ao entre como tema do entre-lugares (Bhabha, 1998) se deu por esse ser considerado um lugar de transdisciplinaridade .  Para tal, o significante entre foi pensado como se fosse um fort´da – um entrar e sair transitando em um discurso e outro, entre a criação do trabalho e seus efeitos de transmissão nos educadores. 

 

Tempo 1

 

Início da Assessoria de Inclusão e observação nas escolas infantis da posição discursiva de semblante dos educadores e Assessoria

Desde a criação e implementação da Assessoria de Inclusão (EP/PI) aos educadores de educação infantil, em 1990, foram abertas várias vagas para receber bebês e crianças pequenas com atrasos de desenvolvimento e sofrimento psíquico. A Assessoria propunha: dispositivos clínicos de reunião com a direção para triar casos de inclusão; observação de bebês e crianças na sala de berçário, maternal e jardim; observações no pátio; entrevistas individuais com algum educador que tivesse laços com determinada criança; encaminhamentos a pais e entrevistas com eles; e formações continuadas com a escola infantil. 

Durante os anos de Assessoria, a pergunta era: o que eram aqueles atos estruturantes dos educadores, que quando se encantavam com as crianças de inclusão, faziam intervenções que lembravam posições discursivas de semblante?

Nesse caminho, a noção de semblante ganhou importância, no sentido de ser o agente nos quatro discursos de Lacan (1969-1970/1992) e o sustentador do discurso analítico. Dessa forma, associamos que o educador também pode ter suas posições discursivas de semblante, ao realizar ¼ de giro nelas e produzir atos estruturantes e de estimulação precoce . 

 

A noção de semblante

 

Camargo (2009) historiciza que o conceito de semblante aparece em um momento já avançado da obra de Lacan, em que ele afirma que não há discurso que não seja semblante. O autor ressalta que há, na língua francesa, diferentes usos para o termo semblante, a maioria relacionada à ideia de falso, de engano ou de fingimento.  Essas expressões como “faire semblant” ou ainda “faire semblant de rien”, são portadoras de uma marca negativa, como uma certa aparência que insiste em dissimular a verdade. Na Psicanálise, ao contrário, as considerações sobre o semblante tomam outra vertente que não a do engodo, indicando se tratar da própria verdade do sujeito enquanto submetido à castração e lei simbólica.

Lacan (1969-1970/1992) nos transmite algo a esse respeito, ao dizer que o discurso é um dispositivo de linguagem que nos permite fazer laços sociais, estabelecendo vínculos entre as pessoas concernidas nesses e ao nível do semblante, e é isso que irá determinar o tipo de discurso. Sendo assim, o que caracteriza cada discurso é aquilo que está no lugar do agente, no qual o semblante se faz presente e representa o papel de ordenar e determinar, pois ele transforma os outros elementos. 

 

As posições discursivas de semblante dos educadores e da assessoria com base nos quatro discursos de Lacan 

 

Consideramos nesta pesquisa os quatro discursos – o do mestre, o do universitário, o da histérica e o do analista – de Lacan (1969-1970/1992) como uma forma de ler a interação entre sujeitos tomados nos campos do social, do familiar, do educativo e do analítico. O que nos pareceu importante foi ler que as crianças com sinais de autismo estão no discurso, pois são faladas pelo outro: pais, coleguinhas, educadores e Assessoria. Esses personagens realizam atos e produções com a criança com sinais de autismo, pois eles as supõem como sujeitos, ao estarem na escola infantil. A questão é que, para ser sujeito, não basta estar na educação infantil com esses personagens, mas sim ter alguém que realize a função materna ou desdobramento dela e os aliene ao seu desejo – Desejo do Outro –, para que se funde uma cadeia discursiva.

Nesse sentido, o Discurso do Mestre (Lacan, 1969-1970/1992) nos parece inaugural na vida de uma criança pequena, posto que ali se inaugura a subjetividade de um sujeito. Esse discurso somente toma valor ao ser remetido ao campo do Outro (Linguagem e função paterna) quando a criança capta, entende e se sente parte desse campo e da mensagem que lhe enviam. Nesse direcionamento, concordamos com Mariotto (2009), ao colocar que a creche ou escola infantil é mais um elemento na participação na geografia psíquica dos bebês. Isso se amplia no caso dos que apresentam sinais de autismo, visto que, segundo Jerusalinsky (1999), estes estão excluídos do Desejo Materno. Laznik (2013) amplia essa questão, ao expor que o bebê com esses sinais estaria impedido de completar a terceira fase do circuito pulsional, pois não se ofereceria ao Outro Primordial e ficaria em um gozo fechado. Nesse rumo, o discurso do mestre parece essencial, visto que, a partir do momento em que alguém ocupa um lugar de mestria para o bebê e o enlaça em seu desejo, é possível que as produções instrumentais do bebê sejam colocadas em jogo na relação com o Outro e com os outros.

Dito isso, é imprescindível considerar que – visto que as crianças ficam em escolas infantis o dia inteiro para seus pais trabalharem – concordamos com Barbosa (2010), quando refere que os educadores também são responsáveis pela formação subjetiva de uma criança. Acrescentamos aqui que não se trata de substituir quem cumpre a função materna para a criança, mas sim ampliar e desdobrar isso, ao pensar que os pais são transmissores de uma linhagem e filiação e os educadores participantes da geografia psíquica das crianças, mas transitórios nas suas vidas. De qualquer forma, pensamos que seja melhor que uma criança pequena ou um bebê com sinais de autismo tenha sido alienado pontualmente ao desejo de um Outro, do que não tenha sido: é melhor que haja o educador do que não haja ninguém. Consideramos que, mesmo que o educador seja transitório na vida da criança, isso pode ser uma reabertura inicial de uma cadeia significante que deixará marcas psíquicas e possibilitará a posterior abertura do gozo fechado e da bolha autista em que a criança se encontra.

Dessa forma, o termo “posições discursivas de semblante” veio a traduzir o que acontece entre um bebê e a sua educadora, quando ela se coloca em determinado giro discursivo e demanda resposta à sua mensagem. Ao fazer demandas de amor e supor um sujeito na criança com sinais de autismo, a educadora nos pareceu produzir uma marca em forma de Alienação Pontual . Ressaltamos que, por mais que ela seja transitória na vida da criança, entendemos que essa marca – que a educadora produz – tem um valor imprescindível na vida da criança. Acrescentamos, entretanto, que se colocar na posição discursiva de semblante de uma função materna ou do Discurso do Mestre não é simples, pois o desejo da educadora não pode ser anônimo, visto que evidencia que determinada criança é a sua preferida entre as outras – sendo ela quem necessita de mais atenção e acolhimento.

Passemos a outro giro e, para isso, lembremos o que Lacan (1972-1973/1985) aponta, em “O Seminário 20”, de que toda mudança de posição discursiva é um signo de amor. Relacionamos que, ao terem, as educadoras, seu saber pedagógico, rotinas e projetos que implicam atuar em uma escola, é tido como pressuposto que todas as crianças tenham que se adaptar e se integrar nesse espaço. Nesse sentido, o discurso universitário tem seu valor, pois isso propõe a configuração simbólica do trabalho de um educador, visto que deve ensinar regras, cores, formas, uso da tesoura, modo de tirar fraldas, comer sozinho, etc. aos seus aluninhos. Mesmo que não sejam conteúdos formais – tendo em vista que requerem certa flexibilidade no dia a dia da rotina –, esses atos pedagógicos implicam objetivos a serem alcançados com as turmas de berçário, maternal e jardim até o final de cada semestre.

Dito isso, o outro giro – o discurso da histérica –, nos parece agir como um acionador para as mudanças e as flexibilidades que se fazem necessárias para uma educadora educar uma criança. Nesse passo, essa posição discursiva de semblante propõe que a educadora movimente sua função pedagógica e amplie seu campo educativo ao inventar, criar, escutar a Assessoria e ir ao campo da Psicanálise para, imaginariamente, conseguir respostas de como furar a barreira autista da criança com quem ela se encantou.

Passemos ao outro giro, o discurso do analista, no qual supomos que, ao se ter um representante da Psicanálise nas escolas infantis, este produzirá movimentos no campo educativo ao escutar o que não se sabe e ao fazer perguntas às educadoras sobre suas relações com as crianças, sobre as rivalidades com os pais, sobre os papéis que ocupam, sobre o que esperam das crianças e sobre quais intervenções utilizam com elas. Nessa direção, Quinet (2015) aponta que nesse discurso o analista não faz semblante, pois ele ocupa a posição de semblante e de objeto “a” (objeto perdido). Elucidando essa questão, salientamos que a assessora de EP/PI possuía formação Psicanalítica, além de ser especialista em Estimulação Precoce (Coriat & Jerusalinsky, 2001). Dessa maneira, a Assessoria de Inclusão (EP/PI) oferecia formações Psicanalíticas das quatro operações do sujeito (Kupfer et al., 2008) e das noções teóricas dos brinquedos estruturantes (Jerusalinsky, 1999), além de fazer uma escuta para eles e suas equipes.

 

Tempo 2

 

As crianças em assessoria 

No tempo do berçário, Manu foi vista pela Assessoria de Inclusão. Ela estava com um ano e três meses, estava desconectada e tinha diagnóstico de distrofia muscular. A direção da escola ressaltou que ela tinha um olhar vago, colocava a mão nos ouvidos pelo barulho, não caminhava, não sentava e não brincava com os coleguinhas. No berçário uma cena foi observada em que a educadora cantava para ela a música da Dona Aranha enquanto percorria seu corpo acompanhando o ritmo da música. A educadora modificou a letra da música:

Dona aranha, subiu pela parede, veio a chuva forte e a derrubou, mas dona aranha é teimosa e desobediente: sobe, sobe, sobe, não ouve, não faz nada. Já acabou a chuva, e a dona aranha, continua a subir. Ela é teimosa e desobediente, sobe, sobe, não ouve, não faz nada (Cantiga cantada pela educadora para Manu, 2014).

Essa música parecia evocar uma transferência de impossibilidade, por mais que o significante teimosa merecesse uma atenção especial. Se a educadora achava a criança teimosa, havia a suposição de um sujeito na bebê. Quando lhe fora perguntado o porquê dessa música, a educadora disse que se tratava da não obediência da criança em atendê-la, mas que ela própria também era teimosa e iria esperar que a menina lhe atendesse, lhe escutasse e lhe ouvisse.  A pergunta que evocava, era se este significante – teimosa – indicava a possibilidade de a teimosa Manu advir.

O segundo bebê que preocupava a equipe diretiva era Leopoldo. Tinha um ano e dois meses e apresentava epilepsia e diagnóstico de autismo. Sua mãe era considerada negligente e ele havia sido internado no hospital várias vezes, em razão de um excesso de vermes e prurido no ouvido. A educadora contou que o bebê Leopoldo costumava ficar muito quietinho. 

A direção de intervenção com os dois bebês foi trabalhada em formação continuada da educação estruturante (Oculto) e intervenções em sala do berçário, brincadeiras estruturantes, orientações posturais, escuta a pais das crianças e seus educadores. 

 

Tempo 3

 

A observação e a avaliação psicanalítica das crianças pela pesquisadora, no maternal

 

Esta etapa consistiu na avaliação psicanalítica (Kupfer, et al, 2008) das crianças aos seus três anos de idade (AP3), quando estavam no maternal. A finalidade da avaliação era observar se Manu e Leopoldo ainda apresentavam sinais de autismo. A avaliação permitiu constatar que essas crianças se posicionavam como sujeito e que pareciam ter saído do risco psíquico do autismo. Trazemos como exemplo uma cena observada em que Manu rivaliza o amor de sua professora do maternal, Mara, e se oferecia à mesma:

Manu estava sentada na lateral, sua professora ficava na ponta da mesa e os colegas nas duas laterais da mesa. A educadora enchia a colher de comida, pegava sua mãozinha e ajudava a colher chegar à sua boquinha, já na segunda colherada a educadora a enchia de comida e logo pedia para ela mesma levantar a colher e levar à boca. Em meio às colheradas, chega e se mete no meio das duas, a menina Renata, e fala algo à educadora. Imediatamente, Manu faz um som de desagrado, empurra Renata, põe as mãos no rosto da professora e puxa o mesmo para ela lhe olhar. (2016)

Foi uma linda cena, em que Manu parecia ter ciúme da educadora com a menininha Renata e disputou esse espaço, o que fez com que aparecesse rivalidade e disputa pelo amor da educadora. Outra cena que nos permitiu pensar no seu posicionamento subjetivo aconteceu quando a pesquisadora estava brincando com Manu na presença da educadora – a menina se dirigiu à professora pedindo água e não à pesquisadora. Nessa cena a pesquisadora parecia representar um terceiro entre as duas. O que nos pareceu importante foi observar que a educadora lhe supunha como sujeito de desejo e atendia seus pedidos.  Jerusalinsky (2012) nos aponta que não basta escutar ou se escutar, é preciso querer ser escutado ou se fazer escutar pelo outro, em uma demanda ativa. Complementando isso, Wanderley (2013) enfatiza que não basta que a criança olhe objetos ou pessoas, ou que se olhe, mas que se faça olhar e que convoque o outro em uma função de reconhecimento. 

Em relação à AP3 (Kupfer, et al, 2008) de Leopoldo, observamos que suas respostas verbais constituíram pistas importantes que denotaram a sua saída do risco psíquico do autismo. O menino, na sala da avaliação, brincou de casinha e escondeu os bonequinhos de super-heróis no roupeiro de brinquedo. Além disso, respondeu baixinho às perguntas da pesquisadora; dentre elas, quando lhe foi perguntado se morava em casa ou apartamento, ele respondeu: “Moro em um catamento” (a família morava em uma região de catadores de lixo).

Elucidando essas questões, observamos que o menino respondia e entendia as perguntas propostas na avaliação, mas notamos também que Leopoldo tinha dificuldades visuais e auditivas. Depois, quando fizemos uma entrevista com a educadora, ela falou que o conhecia pouco, mas se dizia muito preocupada com a negligência materna para com ele, visto que a sua mãe estava cuidando de seus filhos gêmeos, recém-nascidos e internados no hospital com risco de vida. Nesse sentido, o menino e seus irmãos preocupavam muito os educadores da escola infantil, pois, ao que lhes parecia, os três estavam passando por negligência, fome e miséria. A escola infantil encaminhou o caso ao Conselho Tutelar e à Assistência Social da região, que indicaram a ele e seus irmãos uma casa-abrigo. 

 

As entrevistas aos educadores

 

Esta etapa ocorreu em 2017 e consistiu em entrevistar os educadores, a fim de compreender como e que laços discursivos estabelecidos com as crianças podem ter contribuído para a não fixação do autismo. Os operadores clínicos utilizados se constituíram a partir da transferência (Freud, 1912/1996), da memória e descrição das cenas dos educadores do berçário de 2014 – tempo 2 da pesquisa – e do maternal em 2016 – tempo 3 da pesquisa – e na relação com a assessoria denominada Educação Estruturante (oculto). 

 

Resultados da pesquisa

 

Algumas surpresas que o reencontro entre educadores, crianças e Assessoria permitiu

 

Para tal, a direção desta pesquisa trouxe surpresas ao entendermos que a Assessoria de Inclusão, denominada Educação Estruturante, mostrou-se como movimentadora dos giros discursivos e do desejo dos educadores ao intervirem e participarem da subjetividade das duas crianças pequenas com sinais de autismo. Dessa forma, fez-se uma leitura de que, na cena lúdica entre educador e criança, em que a criança nos apareceu como sendo sua predileta entre as outras, esses educadores se autorizaram a fazer posições discursivas de semblante das funções materna, paterna, pedagógica e terapêutica (em Estimulação Precoce), parecendo terem produzido uma marca subjetiva, como forma de uma Alienação Pontual8. Essa produção parece ter enlaçado o registro do Imaginário da criança aos lugares discursivos que percorreram, entre os campos da Educação e da Psicanálise, em ¼ de giro nos quatro discursos de Lacan. Isso nos parece o que Bhabha (1998) enfatiza como transdiciplinaridade. Também não podemos deixar de destacar que os atos educativos dos educadores tomaram uma forma de um brincar compartilhado (Wanderley, 2013) e estruturante na abertura no campo da constituição do sujeito – o que parece ter ajudado as crianças na não fixação de um quadro estrutural do autismo. 

Isso se dá no caso a caso. Conforme dados da pesquisa, Manu e Leopoldo tiveram essa possibilidade de caírem no amor e desejo de suas educadoras, as quais os ajudaram a advir como sujeitos através das posições discursivas de semblante que operavam no dia a dia da rotina da escola. Dessa forma, arriscamo-nos em dizer que – a partir do discurso proferido pelas educadoras, ao suporem as crianças como sujeito e a partir da transferência com elas – foi criado, a posteriori, significantes para a produção das cadeias discursivas das próprias crianças. Após esses laços, as crianças, ao que parece, supuseram que eram parte do desejo do desejo do Outro – das educadoras – já que queriam contentá-las, seguiam-nas com os olhares e disputavam suas atenções. Enfim, por mais que o educador não substitua o Outro Primordial, no tocante à educação infantil, cabe às educadoras, no exercício de sua função, promover condições que possibilitem o desenvolvimento físico e psíquico das crianças.

Dessa forma, ao falar que o educador pode fazer produções discursivas semblantes das funções materna, paterna, pedagógica e terapêutica e que, posteriormente, isso pode compor aberturas no campo de um sujeito que poderá advir, nos colocamos frente a um campo de complementaridade entre o tratar e o educar. O campo da demanda e do desejo do educador em relação aos bebês e crianças pequenas com autismo está em cena nos seus discursos. Contudo, na Psicanálise, a estrutura que está em jogo opera uma subversão na forma em que o tempo e o espaço estão constituídos no senso comum: do tempo cronológico ao tempo do só-depois, produzem-se novos discursos. No novo discurso, a temporalidade faz vir do futuro o passado. 

Dessa maneira, a significação de algo que já se deu, a de uma palavra dita – como a teimosa do berçário, por exemplo – deslocou-se para a chiclezinho da educadora do maternal, compondo um desenrolar da rede significante, em que o sujeito Manu se representou.  No caso de Leopoldo, percebemos que o fato de ele estar ao “Léo” (solto), produziu um “Catamento” no amor de suas educadoras e uma posterior abertura em um “por vir” de um sujeito. 

Lacan (1969-1970/1992) nos mostra como é impossível pensar o sujeito desarticulado de sua inscrição no discurso. Para ele, é impensável separar o sujeito do laço constituído ao objeto pelos significantes. De qualquer modo, não é possível pensar o sujeito desarticulado de sua inscrição no discurso, tanto quanto não é possível supor um discurso no qual já não esteja incluído um sujeito. Para tal, é muito importante atentar às experiências de satisfação em que a criança é constitutivamente submetida em seu ser e como ela é cuidada na escola infantil. Dito de outra forma, as crianças com sinais de autismo produzem muitas manifestações corporais e sonoras, que podem fazer sentido na medida em que o outro lhes atribui um sentido. Não se pode dizer que a criança utiliza essas manifestações corporais para significar alguma coisa ao outro, no caso da exclusão de interação que ela se encontra. Dessa forma, Leopoldo e Manu encontraram respaldo nos seus educadores, no sentido de mobilizar uma leitura nos dois, os quais interpretaram como valor de mensagem destinada ao campo do Outro. Nessa referência de sujeito, os educadores tomaram as manifestações das crianças e as colocaram em um universo de comunicação em que a intervenção do outro se constitui como uma resposta a algo que foi, de antemão, suposto como uma demanda. 

As reflexões e associações que permearam esta pesquisa vieram das observações das cenas relatadas pelos educadores das crianças da pesquisa, os quais, em várias descrições, pareciam terapeutas influenciados pela Educação Estruturante em transmissão com a Psicanálise. Dessa forma, a assessoria teve papel muito importante, quando tomada pelas posições discursivas de semblante entre o discurso analítico e o discurso instrumental da Educação Precoce, em seus giros do tratar e educar, do orientar e escutar. Isso parece ter autorizado os próprios educadores, ao se colocarem nas outras posições semblantes, que ampliavam seu campo pedagógico e propiciaram aberturas subjetivas para as duas crianças.

 

A Assessoria e “A Rendeira”

 

Visto isso, associamos o papel da Assessoria da Educação Estruturante ao que Rey (1990) nos exprime no quadro “A Rendeira” de Vermeer (1669). Na pintura, notamos que o quadro inteiro se organiza em torno da única coisa que o pintor não nos mostra: a agulha com a qual a rendeira borda. Pensamos que o papel da Assessoria estaria relacionado ao papel da agulha, pois mesmo quando estava ausente, parecia continuar simbolicamente produzindo efeitos de transmissão e possibilidades de criação de intervenções estruturantes nos educadores do berçário, em 2014, e da educadora do maternal, em 2016. Em outras palavras, a Assessoria da Educação Estruturante não se encontrava necessariamente na figura da assessora EP/PI, mas na transmissão pluridisciplinar, como essa agulha invisível do quadro de Vermeer e na transdisciplinaridade construída com estes.

 

Figura 1 - A Rendeira

 

Fonte: Vermeer (1669)

 

Associamos a agulha do quadro ao que Lacan (1972-1973/1985) considera como objeto perdido e representante do desejo, no sentido de a Assessoria dar lugar à enunciação do desejo das educadoras. Para tal, ao se detectar sinais de autismo em um bebê ou criança pequena, trata-se de uma urgência de intervenção, em que o campo educativo, psicanalítico ou da estimulação precoce se entrelaçam, a fim de produzir movimentos e aberturas psíquicas no encapsulamento psíquico em que a criança se encontra naquele momento de sua vida. Nesse sentido, ”catar” e observar quem tem um certo encantamento, preferência e carinho, ou transferência com a dita criança nos põe no campo do movimento estrutural e da possibilidade de a criança se tomar pelo campo do Outro. Será isso a prevenção em Psicanálise?

Ainda, como crianças pequenas que apresentam suas estruturas psíquicas indecididas (Bernardino, 2004), supomos que o laço educativo propõe formas de amor e de se filiar à aprendizagem e ao desejo, do Desejo do Outro, no caso, dos educadores citados na pesquisa. Nesse sentido, concordamos com Sônia Motta (2002, p.109) ao dizer: “Para que haja sujeito, tem que haver encantamento”.

 

 

Referências 

 

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AUTOR (Oculto)

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