Entendendo o Autismo

Ambientoterapia



AMBIENTOTERAPIA

                                                    Adrianna Zucchi

                                                    Psicóloga Clínica 

 O termo Comunidade Terapêutica foi popularizado por Maxwell Jones, a partir de 

1959, para definir as experiências desenvolvidas em um hospital psiquiátrico, baseados nos 

trabalhos de Sullivan, Meninger, Bion e Reichman. Suas experiências eram baseadas na 

adoção de medidas coletivas, democráticas e participativas dos pacientes tendo como 

objetivo resgatar processo terapêutico a partir da transformação da dinâmica institucional. A 

idéia da Comunidade Terapêutica vinculava-se à idéia de tratar os grupos como se fosse um 

"organismo psicológico" (Jones, 1972).

 Segundo Osório, uma comunidade terapêutica para crianças e adolescentes deverá ser 

uma espécie de “lar-clube-escola”, onde o paciente possa encontrar oportunidades de 

convívio e ocupação semelhante as do ambiente em que vive. Ainda, pressupões a 

necessidade de contarmos com uma estrutura semelhante ao grupo familiar original, a partir 

de onde possamos tentar a recomposição das relações objetais primárias do paciente,

oferecendo-lhe novos e mais sadios modelos de identificação. 

Inicialmente esse atendimento era destinado aos pacientes adultos, mas depois a crianças e 

adolescentes, utilizando recursos lúdicos, tomou uma configuração que lhe é própria pela 

função pedagógica que amplia as possibilidades terapêuticas. Incluindo rotinas diárias de 

atividades, tais como aulas, recreação, passeios, etc...

 Quanto à equipe necessária para este tipo de atendimento, segundo a bibliografia 

encontrada, seriam psiquiatras, neuropediatras, psicólogos, assistente social, psicopedagogo, enfermeira especializada, além de praxiterapeutas, professores e atendentes psiquiátricos (em

número variável na proporção de um para cada quatro a oito crianças em média). Os pacientes 

devem ser divididos conforme a faixa etária e funcionamento sendo desenvolvidas atividades 

planejadas pelo profissional específico, além de reuniões comunitárias, sendo que o paciente 

torna-se “agente terapêutico”, assim como o terapeuta e as atividades comunitárias já são.

 Em Porto Alegre (RS), foi fundada em 1983 a Comunidade Terapêutica D.W. Winnicott,

uma clínica especializada no atendimento de crianças e adolescentes com problemas 

psiquiátricos. Organizada por um grupo de profissionais coordenado pelo Dr José Ottoni 

Outeiral, na época estava estudando o autor D.W. Winnicott. Assim centrados em um 

referencial psicodinâmico, sob a influência dos estudos realizados de Donald Wood

Winnicott, abrangendo o entendimento das relações mãe-bebê, bem como a importância de 

um ambiente continente, capaz de proporcionar ao indivíduo, condições suficientemente boas

pra seu desenvolvimento, batizaram o nome da clinica. Inspirada no modelo 

ambientoterápico da Clinica Pinel, também de Porto Alegre fundada em 1965 sendo a 

primeira do Brasil, chamada de Comunidade Terapêutica Léo Kanner (atualmente não existe 

mais).

A Comunidade Terapêutica D.W. Winnicott oferecia serviços de internação

psiquiátrica e ambientoterapia, além de um serviço de acompanhamento terapêutico e 

consultas ambulatórias de psiquiatria e psicologia. Focalizou seus estudos e atendendimentos 

com crianças e adolescentes do Espectro Autismo, muitos trabalhos e casos, foram lá 

discutidos e apresentados em Congressos de âmbito nacional e internacional. Deu-se ênfase 

à pesquisa, à investigação, ao desenvolvimento de técnicas para o trabalho com pacientes 

com esta dificuldade emocional, sendo que muito dessas técnicas ainda é utilizado.

 

Atualmente, passados 38 anos, a realidade de atendimento da Clínica modificou-se, 

adaptando-se às exigências do nosso meio. A comunidade terapêutica oferece atendimento 

em regime de hospital turno, manhã ou tarde e hospital dia estendido (dia inteiro mais final 

de semana) centrada no desenvolvimento de atividades ambientoterápica que visam à

socialização, autonomia, controle adequado de impulsos e melhora da autoestima. Os 

pacientes trabalham em grupo formados de acordo com a idade e o nível de desenvolvimento, 

orientados por estagiários de psicologia, psicopedagogia, fonoaudióloga e nutricionista, além 

de dois a três coordenadores responsáveis pelo turno, que são psicólogo e/ou psicopedagogo. 

O trabalho com os familiares também é oferecido tanto em grupo de pais como 

individualmente.

 A clientela da ambientoterapia compreende a faixa etária entre 4anos a 35anos, 

aproximadamente. A demanda atende Autismo, Retardo Mental Leve e Moderado,

Esquizofrenia, Transtornos de Humos Bipolares, Transtorno de Depressão, Transtorno de 

Déficit de Atenção e Hiperatividade, Transtorno de Conduta, Transtornos de Ansiedades,

Transtornos Alimentares, Transtornos Bordelines e Dependência Química.

 A Clínica Winnicott funciona em uma casa nova com mais espaço e um ambiente 

acolhedor e com todas as precauções em ralação a Pandemia. A recepção (secretárias e sala 

de espera), a direção e oito consultórios destinados ao Serviço de Ambulatório (atendimentos

individuais, familiares e de grupo), quatro salas e uma salão para ambiento, sala de reunião, 

sala para estagiário, um refeitório, cozinha, seis banheiros. As salas de grupos para os 

pacientes da ambientoterapia, um salão multiuso (cinema, festas, ping-pong, encontros 

científicos etc), uma sala de materiais, uma sala de informática, umasensorial, também um 

pátio relativamente grande, horta e espaço para quadra de esporte.

O planejamento de atividades com os pacientes da ambientoterapia segue um cronograma 

semanal previamente elaborado pela psicopedagoga e psicólogo tais como: atividades 

praxiterápicas, hora do computador, grupo operativo, atividades físicas, atividade culinária, 

hora do conto, cinema, atividades de higiene, passeios entre outros.

Quanto à questão pedagógica não há objetivos educacionais claros nas atividades propostas, 

pois são dirigidas para o entendimento emocional dos pacientes, sendo sentidas pela equipe 

como integrantes do sistema terapêutico global. O objetivo é sempre o da reorganização 

egóica. A psicopedagoga tem como tarefa incluir no tratamento as técnicas psicopedagogicas 

e educacionais, favorecendo a aquisição de novos comportamentos e a ampliação de

conhecimentos.

 Aos psicólogos cabe a tarefa de coordenação de turnos e de grupos e a responsabilidade

do plano terapêutico de um número específico de pacientes, bem como o contato com a 

família e outros profissionais envolvidos que sejam fora da Clínica.

 A base teórica é a linha psicanalítica, fundamentalmente as teorias desenvolvidas pelo 

autor D.W. Winnicott, relacionadas ao ambiente: Mãe Suficientemente Boa, Holding,

Handling, Ambiente Facilitador. Conceitos relacionados a Falso e Verdadeiro Self, Objetos 

e Fenômenos Transicionais, Espaço Potencial, Transferência e Contratransferência, 

Psicossomática entre outras também são estudados pela equipe.

 O Ambulatório nos últimos anos, com o fechamento da internação ampliou-se para todas 

as faixas etárias de pacientes, nas modalidades de psicoterapia individual (crianças, 

adolescentes e idoso), terapia de casal e família, atendimento psicopedagógico, atendimento fonoaudiológico, atendimento nutricional, atendimento psiquiátrico, avaliação psicológica, 

acompanhamento terapêutico e tratamento para dependentes químicos.

 Os pacientes chegam através dos convênios que a Clinica oferece escolas e profissionais 

de fora, passam por uma triagem da qual avalia a situação e faz as indicações terapêuticas. A 

equipe de profissionais se reúne uma vez na semana para discussão, supervisão e estudo de 

casos clínicos.

 Além do serviço de Ambientoterapia e Ambulatório a Comunidade Terapêutica D. W. 

Winnicott promove curso anual de Capacitação em Acompanhamento Terapêutico (AT),

grupos de estudos e palestras para escolas.

 Ao longo desses 38 anos de existência muita experiência foi adquirida, um aprendizado 

que não termina nunca, nossos pacientes exigem muita dedicação e paciência, mobilizam 

toda equipe promovendo uma interação e união entre os profissionais.

Psicóloga Adrianna Zucchi CRP 07/05068, psicoterapeuta de crianças, adolescentes e 

adultos, especialista em família e casal, ex-diretora da Clínica Winnicott, coordenadora do 

serviço de AT, fundadora e coordenadora do hospital dia estendido.


Assessoria de inclusão: Uma proposta de educação estruturante na prevenção do Autismo


A assessoria de inclusão: uma proposta de educação estruturante na prevenção do autismo

 

The inclusion advice: a proposal for structuring education the prevention of autism

 

La asesoría de inclusión: una propuesta de educación estructurante en la prevención del autismo

 

 

RESUMO 

Este artigo trata de refletir a posição discursiva de semblante dos educadores e de sua Assessoria de Inclusão na prevenção do autismo nas escolas infantis municipais de (oculto). Trata-se de relatar uma experiência da Assessoria de inclusão da Educação Precoce e Psicopedagogia Inicial, na Secretaria Municipal (oculto) denominado Educação Estruturante, incluída em uma pesquisa de Mestrado. Estes escritos propõem compreender como e que laços discursivos estabelecidos entre crianças, educadores e Assessoria podem ter contribuído para a não fixação do autismo em duas crianças observadas quando bebês e aos seus três anos de idade. A leitura foi no sentido de pensarmos a prevenção como forma de intervenção e detecção de sinais de autismo, tomada nos giros discursivos e criação de atividades estruturantes do educador e em interlocução com a assessoria de Inclusão EP/PI. Consideramos no final da pesquisa, que as crianças da pesquisa saíram do risco do autismo, através da intervenção, desejo e transferência que se estabeleceu entre educadores e crianças, bem como no que rebermorou nestes, das noções formativas da Assessoria de Inclusão denominada Educação estruturante. 

 

Palavras-chave: Assessoria de Inclusão; Educação Infantil; Autismo.

 

ABSTRACT 

This article tries to reflect the discursive position of the educators' countenance and their Advising of Inclusion in the prevention of Autism in the municipal schools of (hidden). It is to report an experience of the Advisory Office for Inclusion of Early Education and Initial Psychopedagogy, in the Municipal Secretariat (hidden) called Structure Education, included in a Master's research. These writings propose to understand how and what discursive bonds established between children, educators and Counseling may have contributed to the non-fixation of autism in two children observed when infants and their three years of age. The reading was in the sense of thinking about prevention as a form of intervention and detection of signs of autism, taken in the discursive turns and creation of structuring activities of the educator and in dialogue with the counseling of Inclusion EP / PI. 

We considered at the end of the research, that the children of the research came out of the risk of Autism, through the intervention, desire and transfer that was established between educators and children, as well as in what rebermorou in these, the formative notions of the Counseling of Inclusion denominated Structuring Education.

 

Keywords: Inclusion Counseling; Child education; Autism.

 

RESUMEN 

Este artículo trata de reflejar la posición discursiva de semblante de los educadores y de su Asesoría de Inclusión en la prevención del Autismo en las escuelas infantiles municipales de (oculto). Se trata de relatar una experiencia de la Asesoría de inclusión de la Educación Precoz y Psicopedagogía Inicial, en la Secretaría Municipal (oculto) denominado Educación Estructurante, incluida en una investigación de Maestría. Estos escritos proponen comprender cómo y qué vínculos discursivos establecidos entre niños, educadores y Asesoría pueden haber contribuido a la no fijación del autismo en dos niños observados cuando los bebés y sus tres años de edad. La lectura fue en el sentido de pensar la prevención como forma de intervención y detección de signos de autismo, tomada en los giros discursivos y creación de actividades estructurantes del educador y en interlocución con la asesoría de Inclusión EP / PI. Consideramos al final de la investigación, que los niños de la investigación salieron del riesgo del Autismo, a través de la intervención, deseo y transferencia que se estableció entre educadores y niños, así como en lo que reabrió en ellos, de las nociones formativas de la Asesoría de Inclusión denominada Educación Estructurante.

 

Palabras clave: Asesoría de Inclusión; Educación Infantil; Autismo.

 

 

Introdução

 

Este escrito é fruto de uma experiência que se iniciou na década de 1990 quando um grupo de profissionais começou a realizar atendimentos de Educação Precoce  (EP) e Psicopedagogia Inicial  (PI) e, posteriormente, implementaram uma Assessoria de Inclusão aos Educadores das Escolas Municipais de Educação Infantil através da Educação Estruturante (Oculto).  A Educação Estruturante é um paradigma que propõe ao educador dirigir seu olhar aos aspectos diacrônicos da criança – os do desenvolvimento como um todo –, bem como considerar o tempo sincrônico da criança – a sua estruturação psíquica, cognitiva, neurológica e a articulação com o desejo. Enfatiza a importância de atentar, nos planejamentos educativos, ao desenvolvimento e à singularidade de cada criança na relação com o grupo. Esse trabalho contribuiu para que, cada vez mais cedo, os bebês com sinais de autismo e transtornos no desenvolvimento chegassem às escolas infantis de Porto Alegre. Nesse rumo, as noções de detecção e inclusão foram lançadas pela Assessoria como proposta de instrumentalizar, escutar e intervir nesse campo educacional, com a intenção de se detectar precocemente sinais de autismo, como exclusão do outro (Jerusalinsky, 1999) ou de atrasos no desenvolvimento dos alunos da educação infantil.

 A pesquisa  que, neste escrito, será apresentada teve como objetivo refletir sobre as potencialidades constitutivas dos atos educativos de educadores de escola infantil com duas crianças pequenas que, quando bebês, apresentaram sinais de autismo. Esses educadores foram acompanhados pela Assessoria de Inclusão (EP/PI)  através da Educação Estruturante (Oculto) e depois entrevistados e observados, quando as crianças tinham seus três anos de idade. 

 

As etapas da pesquisa

 

Esta pesquisa veio se delineando desde 1991, momento em que a primeira autora deste escrito assumiu o cargo de Pedagoga Especial para deficientes mentais na Secretaria Municipal de Educação (Oculto). A partir do ingresso no município, foi sendo introduzido o trabalho de EP/PI e, em 2015, com o ingresso no mestrado, foi possível que a experiência de trabalho na Assessoria de Inclusão a educadores de escolas infantis – através da Educação Estruturante –, pudesse ser formalizada. Então, esta pesquisa participa de um ir e vir dos tempos cronológicos, mas também lógicos, em que os fios da experiência foram sendo tecidos em palavras. Assim, podemos falar em três momentos que este escrito se debruça.

O tempo 1 foi o ingresso da primeira autora do texto no campo da Assessoria, ou seja, inicia na década de 1990. Nesse percorrido, a autora observou vários giros dos educadores em suas posições discursivas de semblante, visto que os educadores, ao serem escutados pela Assessoria, autorizavam-se a fazer funções diversas com as crianças em sofrimento psíquico e atrasos no desenvolvimento. O tempo 2 – berçário – foi considerado o momento em que dois bebês da escola João Alhures  apresentaram sinais de autismo e o consequente trabalho de Assessoria aos educadores que cuidavam desses bebês. Transcorridos dois anos, chegamos ao tempo 3 – maternal –, tempo do ingresso no Mestrado da primeira autora, em que o desejo foi pensar no trabalho de Assessoria de Inclusão (EP/PI) e na potencialidade dos atos educativos para a constituição do sujeito. Para isso, no tempo 3, avaliaram-se as duas crianças que tinham sido acompanhadas, no berçário, em Assessoria, por terem apresentado sinais de risco de autismo. Então, o tempo 3 se desdobrou na observação e interação com as crianças nos diferentes ambientes da escola; avaliação das duas crianças que, quando bebês, apresentaram sinais de autismo; e entrevistas com as educadoras que acompanharam essas crianças no berçário e no maternal. 

As crianças foram avaliadas com a Avaliação Psicanalítica aos três anos (AP3) (Kupfer et al., 2008) a fim de observar se ainda apresentavam sinais de autismo. A entrevista com os educadores foi realizada a fim de compreender como e quais laços discursivos estabelecidos entre eles e os bebês poderiam ter contribuído para a não fixação dessa estrutura psíquica denominada autismo. Esse percorrido temporal tenta refletir a Assessoria de Inclusão aos educadores infantis que trabalham com bebês e crianças pequenas em sofrimento psíquico. A questão do trabalho foi: será que a posição discursiva de semblante do educador – enquanto desdobramento das funções materna, paterna, pedagógica e até, algumas vezes, terapêutica – poderia recobrir o Real das repetições e exclusões de crianças com sinais de autismo?

 

A pesquisa e sua metodologia

 

Tratou-se de uma pesquisa de caráter qualitativo e sustentada na Psicanálise. Nesse sentido, foi fundamental o debate da Psicanálise com outros campos de saber, como estratégia científica e política, ao se inserir na Educação Infantil, uma vez que se tomou aqui o contexto teórico-investigativo em uma leitura sobre as posições discursivas de semblante que os educadores ocuparam com as crianças na rotina da escola infantil.

Considerando que a pesquisa foi realizada no a posteriori do tempo da criação da Assessoria de inclusão norteada pela Educação Estruturante, da detecção de risco de autismo em dois bebês, Manu e Leopoldo , do assessoramento às suas educadoras, da avaliação desses bebês quando completaram três anos e da entrevista às educadoras que cuidaram dessas crianças, utilizamo-nos de um balizador de pesquisa: o entre. A relevância dada ao entre como tema do entre-lugares (Bhabha, 1998) se deu por esse ser considerado um lugar de transdisciplinaridade .  Para tal, o significante entre foi pensado como se fosse um fort´da – um entrar e sair transitando em um discurso e outro, entre a criação do trabalho e seus efeitos de transmissão nos educadores. 

 

Tempo 1

 

Início da Assessoria de Inclusão e observação nas escolas infantis da posição discursiva de semblante dos educadores e Assessoria

Desde a criação e implementação da Assessoria de Inclusão (EP/PI) aos educadores de educação infantil, em 1990, foram abertas várias vagas para receber bebês e crianças pequenas com atrasos de desenvolvimento e sofrimento psíquico. A Assessoria propunha: dispositivos clínicos de reunião com a direção para triar casos de inclusão; observação de bebês e crianças na sala de berçário, maternal e jardim; observações no pátio; entrevistas individuais com algum educador que tivesse laços com determinada criança; encaminhamentos a pais e entrevistas com eles; e formações continuadas com a escola infantil. 

Durante os anos de Assessoria, a pergunta era: o que eram aqueles atos estruturantes dos educadores, que quando se encantavam com as crianças de inclusão, faziam intervenções que lembravam posições discursivas de semblante?

Nesse caminho, a noção de semblante ganhou importância, no sentido de ser o agente nos quatro discursos de Lacan (1969-1970/1992) e o sustentador do discurso analítico. Dessa forma, associamos que o educador também pode ter suas posições discursivas de semblante, ao realizar ¼ de giro nelas e produzir atos estruturantes e de estimulação precoce . 

 

A noção de semblante

 

Camargo (2009) historiciza que o conceito de semblante aparece em um momento já avançado da obra de Lacan, em que ele afirma que não há discurso que não seja semblante. O autor ressalta que há, na língua francesa, diferentes usos para o termo semblante, a maioria relacionada à ideia de falso, de engano ou de fingimento.  Essas expressões como “faire semblant” ou ainda “faire semblant de rien”, são portadoras de uma marca negativa, como uma certa aparência que insiste em dissimular a verdade. Na Psicanálise, ao contrário, as considerações sobre o semblante tomam outra vertente que não a do engodo, indicando se tratar da própria verdade do sujeito enquanto submetido à castração e lei simbólica.

Lacan (1969-1970/1992) nos transmite algo a esse respeito, ao dizer que o discurso é um dispositivo de linguagem que nos permite fazer laços sociais, estabelecendo vínculos entre as pessoas concernidas nesses e ao nível do semblante, e é isso que irá determinar o tipo de discurso. Sendo assim, o que caracteriza cada discurso é aquilo que está no lugar do agente, no qual o semblante se faz presente e representa o papel de ordenar e determinar, pois ele transforma os outros elementos. 

 

As posições discursivas de semblante dos educadores e da assessoria com base nos quatro discursos de Lacan 

 

Consideramos nesta pesquisa os quatro discursos – o do mestre, o do universitário, o da histérica e o do analista – de Lacan (1969-1970/1992) como uma forma de ler a interação entre sujeitos tomados nos campos do social, do familiar, do educativo e do analítico. O que nos pareceu importante foi ler que as crianças com sinais de autismo estão no discurso, pois são faladas pelo outro: pais, coleguinhas, educadores e Assessoria. Esses personagens realizam atos e produções com a criança com sinais de autismo, pois eles as supõem como sujeitos, ao estarem na escola infantil. A questão é que, para ser sujeito, não basta estar na educação infantil com esses personagens, mas sim ter alguém que realize a função materna ou desdobramento dela e os aliene ao seu desejo – Desejo do Outro –, para que se funde uma cadeia discursiva.

Nesse sentido, o Discurso do Mestre (Lacan, 1969-1970/1992) nos parece inaugural na vida de uma criança pequena, posto que ali se inaugura a subjetividade de um sujeito. Esse discurso somente toma valor ao ser remetido ao campo do Outro (Linguagem e função paterna) quando a criança capta, entende e se sente parte desse campo e da mensagem que lhe enviam. Nesse direcionamento, concordamos com Mariotto (2009), ao colocar que a creche ou escola infantil é mais um elemento na participação na geografia psíquica dos bebês. Isso se amplia no caso dos que apresentam sinais de autismo, visto que, segundo Jerusalinsky (1999), estes estão excluídos do Desejo Materno. Laznik (2013) amplia essa questão, ao expor que o bebê com esses sinais estaria impedido de completar a terceira fase do circuito pulsional, pois não se ofereceria ao Outro Primordial e ficaria em um gozo fechado. Nesse rumo, o discurso do mestre parece essencial, visto que, a partir do momento em que alguém ocupa um lugar de mestria para o bebê e o enlaça em seu desejo, é possível que as produções instrumentais do bebê sejam colocadas em jogo na relação com o Outro e com os outros.

Dito isso, é imprescindível considerar que – visto que as crianças ficam em escolas infantis o dia inteiro para seus pais trabalharem – concordamos com Barbosa (2010), quando refere que os educadores também são responsáveis pela formação subjetiva de uma criança. Acrescentamos aqui que não se trata de substituir quem cumpre a função materna para a criança, mas sim ampliar e desdobrar isso, ao pensar que os pais são transmissores de uma linhagem e filiação e os educadores participantes da geografia psíquica das crianças, mas transitórios nas suas vidas. De qualquer forma, pensamos que seja melhor que uma criança pequena ou um bebê com sinais de autismo tenha sido alienado pontualmente ao desejo de um Outro, do que não tenha sido: é melhor que haja o educador do que não haja ninguém. Consideramos que, mesmo que o educador seja transitório na vida da criança, isso pode ser uma reabertura inicial de uma cadeia significante que deixará marcas psíquicas e possibilitará a posterior abertura do gozo fechado e da bolha autista em que a criança se encontra.

Dessa forma, o termo “posições discursivas de semblante” veio a traduzir o que acontece entre um bebê e a sua educadora, quando ela se coloca em determinado giro discursivo e demanda resposta à sua mensagem. Ao fazer demandas de amor e supor um sujeito na criança com sinais de autismo, a educadora nos pareceu produzir uma marca em forma de Alienação Pontual . Ressaltamos que, por mais que ela seja transitória na vida da criança, entendemos que essa marca – que a educadora produz – tem um valor imprescindível na vida da criança. Acrescentamos, entretanto, que se colocar na posição discursiva de semblante de uma função materna ou do Discurso do Mestre não é simples, pois o desejo da educadora não pode ser anônimo, visto que evidencia que determinada criança é a sua preferida entre as outras – sendo ela quem necessita de mais atenção e acolhimento.

Passemos a outro giro e, para isso, lembremos o que Lacan (1972-1973/1985) aponta, em “O Seminário 20”, de que toda mudança de posição discursiva é um signo de amor. Relacionamos que, ao terem, as educadoras, seu saber pedagógico, rotinas e projetos que implicam atuar em uma escola, é tido como pressuposto que todas as crianças tenham que se adaptar e se integrar nesse espaço. Nesse sentido, o discurso universitário tem seu valor, pois isso propõe a configuração simbólica do trabalho de um educador, visto que deve ensinar regras, cores, formas, uso da tesoura, modo de tirar fraldas, comer sozinho, etc. aos seus aluninhos. Mesmo que não sejam conteúdos formais – tendo em vista que requerem certa flexibilidade no dia a dia da rotina –, esses atos pedagógicos implicam objetivos a serem alcançados com as turmas de berçário, maternal e jardim até o final de cada semestre.

Dito isso, o outro giro – o discurso da histérica –, nos parece agir como um acionador para as mudanças e as flexibilidades que se fazem necessárias para uma educadora educar uma criança. Nesse passo, essa posição discursiva de semblante propõe que a educadora movimente sua função pedagógica e amplie seu campo educativo ao inventar, criar, escutar a Assessoria e ir ao campo da Psicanálise para, imaginariamente, conseguir respostas de como furar a barreira autista da criança com quem ela se encantou.

Passemos ao outro giro, o discurso do analista, no qual supomos que, ao se ter um representante da Psicanálise nas escolas infantis, este produzirá movimentos no campo educativo ao escutar o que não se sabe e ao fazer perguntas às educadoras sobre suas relações com as crianças, sobre as rivalidades com os pais, sobre os papéis que ocupam, sobre o que esperam das crianças e sobre quais intervenções utilizam com elas. Nessa direção, Quinet (2015) aponta que nesse discurso o analista não faz semblante, pois ele ocupa a posição de semblante e de objeto “a” (objeto perdido). Elucidando essa questão, salientamos que a assessora de EP/PI possuía formação Psicanalítica, além de ser especialista em Estimulação Precoce (Coriat & Jerusalinsky, 2001). Dessa maneira, a Assessoria de Inclusão (EP/PI) oferecia formações Psicanalíticas das quatro operações do sujeito (Kupfer et al., 2008) e das noções teóricas dos brinquedos estruturantes (Jerusalinsky, 1999), além de fazer uma escuta para eles e suas equipes.

 

Tempo 2

 

As crianças em assessoria 

No tempo do berçário, Manu foi vista pela Assessoria de Inclusão. Ela estava com um ano e três meses, estava desconectada e tinha diagnóstico de distrofia muscular. A direção da escola ressaltou que ela tinha um olhar vago, colocava a mão nos ouvidos pelo barulho, não caminhava, não sentava e não brincava com os coleguinhas. No berçário uma cena foi observada em que a educadora cantava para ela a música da Dona Aranha enquanto percorria seu corpo acompanhando o ritmo da música. A educadora modificou a letra da música:

Dona aranha, subiu pela parede, veio a chuva forte e a derrubou, mas dona aranha é teimosa e desobediente: sobe, sobe, sobe, não ouve, não faz nada. Já acabou a chuva, e a dona aranha, continua a subir. Ela é teimosa e desobediente, sobe, sobe, não ouve, não faz nada (Cantiga cantada pela educadora para Manu, 2014).

Essa música parecia evocar uma transferência de impossibilidade, por mais que o significante teimosa merecesse uma atenção especial. Se a educadora achava a criança teimosa, havia a suposição de um sujeito na bebê. Quando lhe fora perguntado o porquê dessa música, a educadora disse que se tratava da não obediência da criança em atendê-la, mas que ela própria também era teimosa e iria esperar que a menina lhe atendesse, lhe escutasse e lhe ouvisse.  A pergunta que evocava, era se este significante – teimosa – indicava a possibilidade de a teimosa Manu advir.

O segundo bebê que preocupava a equipe diretiva era Leopoldo. Tinha um ano e dois meses e apresentava epilepsia e diagnóstico de autismo. Sua mãe era considerada negligente e ele havia sido internado no hospital várias vezes, em razão de um excesso de vermes e prurido no ouvido. A educadora contou que o bebê Leopoldo costumava ficar muito quietinho. 

A direção de intervenção com os dois bebês foi trabalhada em formação continuada da educação estruturante (Oculto) e intervenções em sala do berçário, brincadeiras estruturantes, orientações posturais, escuta a pais das crianças e seus educadores. 

 

Tempo 3

 

A observação e a avaliação psicanalítica das crianças pela pesquisadora, no maternal

 

Esta etapa consistiu na avaliação psicanalítica (Kupfer, et al, 2008) das crianças aos seus três anos de idade (AP3), quando estavam no maternal. A finalidade da avaliação era observar se Manu e Leopoldo ainda apresentavam sinais de autismo. A avaliação permitiu constatar que essas crianças se posicionavam como sujeito e que pareciam ter saído do risco psíquico do autismo. Trazemos como exemplo uma cena observada em que Manu rivaliza o amor de sua professora do maternal, Mara, e se oferecia à mesma:

Manu estava sentada na lateral, sua professora ficava na ponta da mesa e os colegas nas duas laterais da mesa. A educadora enchia a colher de comida, pegava sua mãozinha e ajudava a colher chegar à sua boquinha, já na segunda colherada a educadora a enchia de comida e logo pedia para ela mesma levantar a colher e levar à boca. Em meio às colheradas, chega e se mete no meio das duas, a menina Renata, e fala algo à educadora. Imediatamente, Manu faz um som de desagrado, empurra Renata, põe as mãos no rosto da professora e puxa o mesmo para ela lhe olhar. (2016)

Foi uma linda cena, em que Manu parecia ter ciúme da educadora com a menininha Renata e disputou esse espaço, o que fez com que aparecesse rivalidade e disputa pelo amor da educadora. Outra cena que nos permitiu pensar no seu posicionamento subjetivo aconteceu quando a pesquisadora estava brincando com Manu na presença da educadora – a menina se dirigiu à professora pedindo água e não à pesquisadora. Nessa cena a pesquisadora parecia representar um terceiro entre as duas. O que nos pareceu importante foi observar que a educadora lhe supunha como sujeito de desejo e atendia seus pedidos.  Jerusalinsky (2012) nos aponta que não basta escutar ou se escutar, é preciso querer ser escutado ou se fazer escutar pelo outro, em uma demanda ativa. Complementando isso, Wanderley (2013) enfatiza que não basta que a criança olhe objetos ou pessoas, ou que se olhe, mas que se faça olhar e que convoque o outro em uma função de reconhecimento. 

Em relação à AP3 (Kupfer, et al, 2008) de Leopoldo, observamos que suas respostas verbais constituíram pistas importantes que denotaram a sua saída do risco psíquico do autismo. O menino, na sala da avaliação, brincou de casinha e escondeu os bonequinhos de super-heróis no roupeiro de brinquedo. Além disso, respondeu baixinho às perguntas da pesquisadora; dentre elas, quando lhe foi perguntado se morava em casa ou apartamento, ele respondeu: “Moro em um catamento” (a família morava em uma região de catadores de lixo).

Elucidando essas questões, observamos que o menino respondia e entendia as perguntas propostas na avaliação, mas notamos também que Leopoldo tinha dificuldades visuais e auditivas. Depois, quando fizemos uma entrevista com a educadora, ela falou que o conhecia pouco, mas se dizia muito preocupada com a negligência materna para com ele, visto que a sua mãe estava cuidando de seus filhos gêmeos, recém-nascidos e internados no hospital com risco de vida. Nesse sentido, o menino e seus irmãos preocupavam muito os educadores da escola infantil, pois, ao que lhes parecia, os três estavam passando por negligência, fome e miséria. A escola infantil encaminhou o caso ao Conselho Tutelar e à Assistência Social da região, que indicaram a ele e seus irmãos uma casa-abrigo. 

 

As entrevistas aos educadores

 

Esta etapa ocorreu em 2017 e consistiu em entrevistar os educadores, a fim de compreender como e que laços discursivos estabelecidos com as crianças podem ter contribuído para a não fixação do autismo. Os operadores clínicos utilizados se constituíram a partir da transferência (Freud, 1912/1996), da memória e descrição das cenas dos educadores do berçário de 2014 – tempo 2 da pesquisa – e do maternal em 2016 – tempo 3 da pesquisa – e na relação com a assessoria denominada Educação Estruturante (oculto). 

 

Resultados da pesquisa

 

Algumas surpresas que o reencontro entre educadores, crianças e Assessoria permitiu

 

Para tal, a direção desta pesquisa trouxe surpresas ao entendermos que a Assessoria de Inclusão, denominada Educação Estruturante, mostrou-se como movimentadora dos giros discursivos e do desejo dos educadores ao intervirem e participarem da subjetividade das duas crianças pequenas com sinais de autismo. Dessa forma, fez-se uma leitura de que, na cena lúdica entre educador e criança, em que a criança nos apareceu como sendo sua predileta entre as outras, esses educadores se autorizaram a fazer posições discursivas de semblante das funções materna, paterna, pedagógica e terapêutica (em Estimulação Precoce), parecendo terem produzido uma marca subjetiva, como forma de uma Alienação Pontual8. Essa produção parece ter enlaçado o registro do Imaginário da criança aos lugares discursivos que percorreram, entre os campos da Educação e da Psicanálise, em ¼ de giro nos quatro discursos de Lacan. Isso nos parece o que Bhabha (1998) enfatiza como transdiciplinaridade. Também não podemos deixar de destacar que os atos educativos dos educadores tomaram uma forma de um brincar compartilhado (Wanderley, 2013) e estruturante na abertura no campo da constituição do sujeito – o que parece ter ajudado as crianças na não fixação de um quadro estrutural do autismo. 

Isso se dá no caso a caso. Conforme dados da pesquisa, Manu e Leopoldo tiveram essa possibilidade de caírem no amor e desejo de suas educadoras, as quais os ajudaram a advir como sujeitos através das posições discursivas de semblante que operavam no dia a dia da rotina da escola. Dessa forma, arriscamo-nos em dizer que – a partir do discurso proferido pelas educadoras, ao suporem as crianças como sujeito e a partir da transferência com elas – foi criado, a posteriori, significantes para a produção das cadeias discursivas das próprias crianças. Após esses laços, as crianças, ao que parece, supuseram que eram parte do desejo do desejo do Outro – das educadoras – já que queriam contentá-las, seguiam-nas com os olhares e disputavam suas atenções. Enfim, por mais que o educador não substitua o Outro Primordial, no tocante à educação infantil, cabe às educadoras, no exercício de sua função, promover condições que possibilitem o desenvolvimento físico e psíquico das crianças.

Dessa forma, ao falar que o educador pode fazer produções discursivas semblantes das funções materna, paterna, pedagógica e terapêutica e que, posteriormente, isso pode compor aberturas no campo de um sujeito que poderá advir, nos colocamos frente a um campo de complementaridade entre o tratar e o educar. O campo da demanda e do desejo do educador em relação aos bebês e crianças pequenas com autismo está em cena nos seus discursos. Contudo, na Psicanálise, a estrutura que está em jogo opera uma subversão na forma em que o tempo e o espaço estão constituídos no senso comum: do tempo cronológico ao tempo do só-depois, produzem-se novos discursos. No novo discurso, a temporalidade faz vir do futuro o passado. 

Dessa maneira, a significação de algo que já se deu, a de uma palavra dita – como a teimosa do berçário, por exemplo – deslocou-se para a chiclezinho da educadora do maternal, compondo um desenrolar da rede significante, em que o sujeito Manu se representou.  No caso de Leopoldo, percebemos que o fato de ele estar ao “Léo” (solto), produziu um “Catamento” no amor de suas educadoras e uma posterior abertura em um “por vir” de um sujeito. 

Lacan (1969-1970/1992) nos mostra como é impossível pensar o sujeito desarticulado de sua inscrição no discurso. Para ele, é impensável separar o sujeito do laço constituído ao objeto pelos significantes. De qualquer modo, não é possível pensar o sujeito desarticulado de sua inscrição no discurso, tanto quanto não é possível supor um discurso no qual já não esteja incluído um sujeito. Para tal, é muito importante atentar às experiências de satisfação em que a criança é constitutivamente submetida em seu ser e como ela é cuidada na escola infantil. Dito de outra forma, as crianças com sinais de autismo produzem muitas manifestações corporais e sonoras, que podem fazer sentido na medida em que o outro lhes atribui um sentido. Não se pode dizer que a criança utiliza essas manifestações corporais para significar alguma coisa ao outro, no caso da exclusão de interação que ela se encontra. Dessa forma, Leopoldo e Manu encontraram respaldo nos seus educadores, no sentido de mobilizar uma leitura nos dois, os quais interpretaram como valor de mensagem destinada ao campo do Outro. Nessa referência de sujeito, os educadores tomaram as manifestações das crianças e as colocaram em um universo de comunicação em que a intervenção do outro se constitui como uma resposta a algo que foi, de antemão, suposto como uma demanda. 

As reflexões e associações que permearam esta pesquisa vieram das observações das cenas relatadas pelos educadores das crianças da pesquisa, os quais, em várias descrições, pareciam terapeutas influenciados pela Educação Estruturante em transmissão com a Psicanálise. Dessa forma, a assessoria teve papel muito importante, quando tomada pelas posições discursivas de semblante entre o discurso analítico e o discurso instrumental da Educação Precoce, em seus giros do tratar e educar, do orientar e escutar. Isso parece ter autorizado os próprios educadores, ao se colocarem nas outras posições semblantes, que ampliavam seu campo pedagógico e propiciaram aberturas subjetivas para as duas crianças.

 

A Assessoria e “A Rendeira”

 

Visto isso, associamos o papel da Assessoria da Educação Estruturante ao que Rey (1990) nos exprime no quadro “A Rendeira” de Vermeer (1669). Na pintura, notamos que o quadro inteiro se organiza em torno da única coisa que o pintor não nos mostra: a agulha com a qual a rendeira borda. Pensamos que o papel da Assessoria estaria relacionado ao papel da agulha, pois mesmo quando estava ausente, parecia continuar simbolicamente produzindo efeitos de transmissão e possibilidades de criação de intervenções estruturantes nos educadores do berçário, em 2014, e da educadora do maternal, em 2016. Em outras palavras, a Assessoria da Educação Estruturante não se encontrava necessariamente na figura da assessora EP/PI, mas na transmissão pluridisciplinar, como essa agulha invisível do quadro de Vermeer e na transdisciplinaridade construída com estes.

 

Figura 1 - A Rendeira

 

Fonte: Vermeer (1669)

 

Associamos a agulha do quadro ao que Lacan (1972-1973/1985) considera como objeto perdido e representante do desejo, no sentido de a Assessoria dar lugar à enunciação do desejo das educadoras. Para tal, ao se detectar sinais de autismo em um bebê ou criança pequena, trata-se de uma urgência de intervenção, em que o campo educativo, psicanalítico ou da estimulação precoce se entrelaçam, a fim de produzir movimentos e aberturas psíquicas no encapsulamento psíquico em que a criança se encontra naquele momento de sua vida. Nesse sentido, ”catar” e observar quem tem um certo encantamento, preferência e carinho, ou transferência com a dita criança nos põe no campo do movimento estrutural e da possibilidade de a criança se tomar pelo campo do Outro. Será isso a prevenção em Psicanálise?

Ainda, como crianças pequenas que apresentam suas estruturas psíquicas indecididas (Bernardino, 2004), supomos que o laço educativo propõe formas de amor e de se filiar à aprendizagem e ao desejo, do Desejo do Outro, no caso, dos educadores citados na pesquisa. Nesse sentido, concordamos com Sônia Motta (2002, p.109) ao dizer: “Para que haja sujeito, tem que haver encantamento”.

 

 

Referências 

 

BARBOSA, Denise. O bebê e a Creche: pode-se falar em função materna? In: BARBOSA, Denise; OLIVEIRA, Erika (Orgs.), Psicanálise e clínica com bebês: sintoma, tratamento e interdisciplina na primeira infância. São Paulo: Instituto Langage, 2010.

BERNARDINO, Leda. A intervenção psicanalítica nas psicoses não decididas na infância. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DO LEPSI, 5. 2004, São Paulo. Anais ... São Paulo: LEPSI, 2004.

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

CAMARGO, Carlos. Semblante e Verdade. Revista Latusa Digital, v. 6, n. 35, 2009.

CORIAT, Lydia; JERUSALINSKY, Alfredo. Escritos da Criança: nº 6. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 2001.

FREUD, S. A dinâmica da transferência [1912]. In. FREUD, S., Edição Standard Brasileira Das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 107-119.

JERUSALINSKY, Alfredo. Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre: Ofícios, 1999.

JERUSALINSKY, Alfredo. A Psicanálise do Autismo. São Paulo: Instituto Language, 2012.

KUPFER, Maria Cristina; JERUSALINSKY, Alfredo; INFANTE, Paulo; BERNARDINO, Leda. Roteiro para a Avaliação Psicanalítica de Três anos - AP3. In: LERNER, Rogério; KUPFER, Maria Cristina (Orgs.), Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa. São Paulo, SP: Escuta, 2008. p. 137-147.

LACAN, J. O Seminário, Livro 20: mais ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LACAN, J. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

LAZNIK, Marie-Christine. A hora e a vez do bebê. São Paulo: Instituto Language, 2013.

MARIOTTO, Rosa Maria. Cuidar, educar e prevenir: as funções da creche na subjetivação de bebês. São Paulo: Escuta, 2009.

MOTTA, Sônia. Prevenção em saúde mental - por que não? In: BERNARDINO, Leda; Rohenkohl, Claudia (Orgs.), O bebê e a modernidade; abordagens teórico-clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.

QUINET, Antonio. Édipo ao pé da letra: Fragmentos da tragédia e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.

AUTOR (Oculto)

REY, Pierre. Uma temporada com Lacan. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.

VERMEER, Johannes. A Rendeira. [Óleo sobre tela] Paris: Museu do Louvre, 1699.

WANDERLEY, Daniele. Aventuras psicanalíticas com crianças autistas e seus pais. Salvador: Ágalma, 2013.

 

 

 

 

 

 


Psicomotricidade e Autismo:com a palavra do Corpo



Psicomotricidade e Autismo: com a palavra, o corpo.

Maximila (Lila) Coelho Psicomotricista | ABP n° 309/2014 – CBO 2239-15 Terapeuta Integrativa Mestre em Educação; Esp em Educ Psicomotora; Esp Educ Infantil; Esp Psicologia Escolar; DEA em Diagnóstico e Avaliação Educativa/Univ da Coruña Especializanda em Saúde Mental Sócia Titular da Associação Brasileira de Psicomotricidade Membro da Comissão Científica do Capítulo Regional Sul da ABP.

 

Querid@s Leitores, Retorno a esse lugar para compartilhar com vocês uma cena e uma reflexão. Antes, porém quero dizer-lhes que existe um universo imensurável de possibilidades de dizer ao Outro sobre nós, nossos desejos, sentimentos, expectativas e propósitos. A CENA Falo do lugar de terapeuta que cotidianamente dialoga com o mundo do autista pela via corporal – psicotônica. Falo de um ambiente clínico onde a Psicomotricidade se ocupa com a organização corporal, o acesso às múltiplas experiências comunicativas, à linguagem simbólica, à vivência do corpo em relação, à livre expressão das emoções e sentimentos, à integração social. Falo de um cenário onde dois corpos mergulham em jogos lúdicos, espontâneos, mediados por diferentes objetos, diferentes tamanhos, cores, texturas, pesos, temperaturas; de contrastes e nuances; falo de um lugar onde dois, terapeuta e paciente, se transformam em muitos; lugar de realidade e fantasia; personagens de uma vida que ganha sentido e significado na disponibilidade corporal e empatia do terapeuta, na aceitação e significação da palavra não dita; de “um diálogo de perguntas e respostas motoras que respeita, a cada instante, as necessidades de sua evolução” (TORRES, 2019). Falo de uma vivência autêntica, de vivência dos sentidos (sensório-motora), cenário para o desenvolvimento do esquema e da imagem corporal, da consciência do seu corpo e do Outro, de relação e comunicação consigo e com Outro. Falo, portanto, de um lugar para o autista “Ser no mundo” ao invés de “ser para o Mundo”. A REFLEXÂO Há mais de 40 anos a Psicomotricidade - formação e prática profissional - encontra-se instituída formalmente no Brasil sob a tutela e representatividade da Associação Brasileira de Psicomotricidade – ABP. Em 2019 foi regulamentada pelo governo federal como profissão e desde então, a ABP tem orientado os praticantes da Psicomotricidade a regularizarem sua situação formativa e profissional. A presença de um psicomotricista na equipe multiprofissional é fundamental do nascimento às primeiras investigações clínicas e diagnósticas sobre entraves no desenvolvimento. Certifique-se de que seu psicomotricista atende às especificidades formativas e profissionais. Consulte a ABP: www.abpcapituloregionalsul.com.br.


O que é Transtorno do Espectro Autista - TEA?



 

Marilei Silveira
Pedagoga Ed. Especial
Psicopedagoga Clínica e Institucional

 

 

OTranstorno do Espectro Autista - CID 10 (F84.0) é um Transtorno do Neurodesenvolvimento, que apresenta critérios diagnósticos específicos, e  se caracteriza por déficits persistentes na comunicação social recíproca, na interação social,  padrões restritos e repetitivos do comportamento, interesses ou atividades específicas. Esses sintomas estão presentes desde o início da infância, prejudicando o seu funcionamento.

 

Dentro do espectro, as manifestações do Autismo variam dependendo dos fatores ambientais, do nível de desenvolvimento, idade cronológica, e da gravidade da condição autista. Muitas pessoas com TEA apresentam déficits de linguagem, as quais variam da ausência total da fala, fala eco até linguagem explicitamente literal ou afetada. Mesmo quando habilidades linguísticas formais estão intactas, o uso da linguagem para comunicação social recíproca pode ser prejudicada. Déficits motores podem estar presentes, incluindo falta de coordenação, marcha atípica, e outros sinais motores anormais como caminhar na ponta dos pés.

 

É possível verificar, que em alguns casos de bebês ou crianças pequenas, existe a exclusão de seu campo as pessoas implicadas em seus cuidados, manifestando posteriormente dificuldades na aquisição da linguagem, e na produção simbólica (brincar de faz de conta, brincar simbólico).

 

Para tanto, visando o desenvolvimento de todos os sujeitos é necessário o amparo as suas especificidades, levando em conta as áreas da saúde, educação e assistência social no enfrentamento de suas dificuldades.

 

A AFAPA tem como objetivo acolher essa demanda, e amparar aqueles que desejarem trilhar conosco esse caminho.  

 

 

Referências:

- APPOA /Correio 222.223

   Associação Psicanalítica de Porto Alegre

   Dar a Palavra aos Autistas

   Porto Alegre, 2013

- Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5ª edição)

  DSM -5 / American Psychiatric Association

  Porto Alegre: Artmed, 2014 


INCLUSÃO ESCOLAR DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL. POR QUE É TÃO DIFÍCIL EFETIVÁ-LA?



 

 Karla Wunder da Silva
Doutoranda em Educação 
Pedagoga Especial/Psicopedagoga
Especialista em Autismo

 

 

INTRODUÇÃO

 

Durante o percurso realizado no curso de mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, realizei uma pesquisa em diferentes escolas regulares, que se propunham efetivar a inclusão escolar de alunos com deficiência intelectual. Buscava desvendar como se efetivava a inclusão desses alunos e o que acontecia durante este percurso escolar que gerava a exclusão dos mesmos e o encaminhamento para escolas especiais. Nas visitas as escolas foram entrevistadas a equipe diretiva, e os professores do ensino fundamental, séries iniciais.

 

Cabe aqui ressaltar, que na época da pesquisa citada acima, a nomenclatura utilizada ainda era deficiência mental, sendo que a troca para deficiência intelectual foi proposta e se efetivou após um evento do qual o Brasil também participou, organizado pela Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde em Montreal no Canadá, em outubro de 2004. Este evento aprovou o documento DECLARAÇÃO DE MONTREAL SOBRE DEFICIÊNCIA INTELECTUAL. Observa-se que este termo foi utilizado também em francês e inglês: Déclaration de Montreal sur la Déficiénce Intelectuelle, Montreal Declaration on Intellectual Disability). Contudo, a expressão deficiência intelectual foi oficialmente utilizada pela primeira vez muito antes do evento em Montreal, quando em 1995, a Organização das Nações Unidas realizou em Nova York o simpósio chamado Deficiência Intelectual: Programas, Políticas e Planejamento para o Futuro (BRASIL, 2004).

 

Pude perceber na época da pesquisa, e ainda hoje, quando realizo formações com diversas prefeituras do Rio Grande do Sul e com escolas públicas e privadas, que as propostas registradas nos projetos político pedagógico podem, e muitas vezes são, claras e assertivas dentro do que deveria ser uma escola inclusiva, mas na prática, com o aluno real, constatam-se mudanças nas idéias originais e um “esvaziamento” de motivações por parte da escola, ou seja, vai se perdendo o incentivo, à medida que avança o ano letivo. Essas percepções ainda hoje se fazem atuais, mostrando que as escolas ainda tem dificuldade de efetivar com qualidade a inclusão de alunos que apresentem uma deficiência intelectual.

 

A escola, através de seus integrantes, passa a descrer das próprias possibilidades no desenvolvimento de um processo de inclusão escolar. E, o que muitas vezes ocorre, é que depois de um percurso do aluno com deficiência intelectual no ensino regular, este acaba sendo encaminhado para uma escola especial.

 

Defendo que somente as propostas regimentadas, bem redigidas em Projetos Político-Pedagógicos, por si só, não garantem a inclusão dos alunos com deficiência intelectual.

 

É fundamental a existência da coerência entre teoria e prática. Que as propostas tomem “vida” na ação dos educadores. Estes são os protagonistas que promovem os movimentos pedagógicos para a escola funcionar, como também são os que dão forma à proposta pedagógica.

 

Várias são as questões que podem ser pontuadas como possíveis causas que facilitam a exclusão dos alunos com deficiência intelectual de escolas regulares, mesmo quando as mesmas apresentam um Projeto Político Pedagógico que aponte para uma educação inclusiva. Trago aqui a discussão de algumas dessas situações, que vão interferindo no sucesso do processo educacional e que foram elencadas durante minha pesquisa e desenvolvidas na minha dissertação de mestrado e que hoje ainda se mostram atuais e presentes na inclusão de alunos com deficiência intelectual.

Inicialmente, é necessário compreender que pela complexidade que envolve a aprendizagem do aluno com deficiência intelectual, a inclusão do mesmo ainda é o “tendão de Aquiles” dos educadores que se propõem a realizar a inclusão. Isso acontece não pelo fato da constituição da própria deficiência que sem sombra de dúvida, torna a aprendizagem do sujeito diferenciada, mas principalmente porque os professores ainda não tem formação para trabalhar com esses alunos, tampouco conhecem a deficiência e o que ela abrange ou as estratégias que poderiam beneficiar a educação e as aprendizagens deste aluno. A formação do professor para lidar com tamanha diversidade é mais complexa, ou como afirma Rozek:

 

Quando se discute a formação do professor, tem-se a clareza de que não se trata apenas de sua habilitação técnica, da aquisição e do domínio de um conjunto de informaçãoes e de habilidades didáticas. Compreende-se a formação no sentido de uma autêntica Bildung, ou seja, da formação humana em sua integralidade. Daí a complexidade dessa função social, pois implica condições pessoais para o exercício de sua função e da valorização da dimensão filosófica que sustenta o agir pedagógico. É por exigência ética que a atividade profissional docente deve se conceber e realizar-se como investimento intencional sistematizado (2012, p.29-30).

 

OS SENTIMENTOS DOS PROFESSORES SOBRE O PROCESSO DE INCLUSÃO ESCOLAR.

 

Muitos foram e são os sentimentos descritos e pontuados pelos diferentes professores nas diversas escolas pesquisadas e ainda hoje nas formações que ministro, quando estabeleço um dialogo com os mesmos. Entre os sentimentos que aparecem cito angústia, medo, ansiedade, raiva, pavor, sensação de abandono, entre outros tantos desvelados durante a pesquisa realizada.

 

A angústia dos professores aparece no que se refere ao número de alunos excessivo nas salas de aula das escolas regulares, pelo não acompanhamento da família dos alunos com deficiência intelectual em questões referentes à medicação e a tratamentos prescritos, mas não observados, influindo no desempenho do aluno e na qualificação das intervenções pedagógicas do professor, pelo sentimento de incompletude, ou seja, de não realização da tarefa para a qual foi considerado apto durante a formação profissional. Alguns docentes, frente ao aluno, que apresenta deficiência intelectual, sentem-se impotentes e buscam desesperadamente entender como se realizam as construções cognitivas, como ensinar cada aluno frente às suas necessidades evidentes e às potencialidades muitas vezes obscurecidas.

 

Esses profissionais sentem-se incapazes diante da complexidade que esses alunos apresentam nas suas aprendizagens, com medo de que talvez não possam ser úteis para o desenvolvimento desse alunado. Como sujeitos mediadores do saber, entendem a importância das propostas inclusivas, mas denotam sérias dificuldades na ação, esperando, muitas vezes, receitas de “como fazer”, esquecendo-se de que educação envolve seres humanos, logo, é um processo incompatível com tratamento padronizado.

 

Carvalho (2004) sugere mudança de atitude dos profissionais frente a realidade escolar que se deseja “não excludente”:

Trabalhar para a mudança de atitude de nossos colegas será muito mais proveitoso se buscarmos as origens da rejeição e pudermos remover esta barreira, usando-se, dentre outros mecanismos, as relações dialógicas, exercitando, a escuta, em vez de entrarmos com receitas prontas (p. 74).

 

Constata-se, então, que esses sentimentos dos professores enquadram-se naquilo que se classifica como barreiras atitudinais (CARVALHO, 2004). São esses sentimentos que vão afastando os alunos dos professores, que vão corroendo o processo ensino-aprendizagem, que vão frustrando o professor e fazendo com que o fracasso atinja a ambos, tanto o aluno como aprendente quanto o professor como ensinante.

 

Evidencia-se, no professor, falta de confiança no próprio potencial de ensinar, bem como a inexistência do “desejo” de promover o desenvolvimento integral do aluno, na conquista de saberes nas diferentes áreas do conhecimento. Assim, as dificuldades iniciais enfrentadas pelos docentes assumem caráter de problemas que podem se tornar barreiras de difícil remoção tal como define Carvalho (2004):

[...] as dificuldades se transformam em problemas na medida em que não sabemos, não queremos ou não dispomos de meios para enfrentá-las. Neste caso formam-se as barreiras, os entraves; alguns tornando-se crônicos e de mais difícil superação (p. 58).

 

Essas barreiras não são removidas pela imposição de legislação, decretos, e/ou fazendo valer determinações de ordem superior. Dependem muito mais da reestruturação dos aspectos subjetivos (afetivo-emocionais) que interferem na postura de cada pessoa e nas atitudes de cada um frente ao outro, diferente de nós, com características únicas, intransferíveis, e que, por isso mesmo oferecem possibilidades para o conhecimento do ser humano. Da mesma forma se relacionam com as concepções dos professores sobre os diferentes princípios do processo de inclusão.

 

É importante lembrar que nossa prática pedagógica está marcada pelas nossas experiências de vida, marcadas pela forma como nos constituímos sujeito de saber e sujeito de desejos. Como afirmam Stobäus e Mosquera (2012) “somos marcados pela nossa própria trajetória pessoal em nossas opções de vida, pelas experiências vividas, bem como por aspectos de uma pessoa que consideramos relevante, um mentor (p.155)”.

diferentes aspectos do cotidiano escolar

 

A análise do cotidiano escolar pressupõe compreender não somente a escola nos seus aspectos estruturais, mas, essencialmente, como pode se tornar produtora do fracasso dos alunos, levando-os ao insucesso e, conseqüentemente, à exclusão. Para essa compreensão, se faz necessário, muitas vezes, procurar os erros ou equívocos na própria escola, como espaço de construção de conhecimento e de desenvolvimento de valores. Equívocos provocados, quer pela ideologia que perpassa as decisões administrativas e pedagógicas que pelas próprias condições em que ocorre o processo ensino-aprendizagem, ou até mesmo, em que o processo não ocorre (Carvalho, 2003).

 

A mudança de atitudes, ao se encarar as diferenças entre os semelhantes, traz a necessidade de repensar a prática pedagógica desenvolvida nas escolas, bem como identificar os pontos de estrangulamento do processo de inclusão escolar para a efetiva remoção de barreiras e concretização da verdadeira educação inclusiva, diretriz internacional para o século XXI (DELORS, 2000).

 

1. Concepção dos professores sobre inclusão de alunos com deficiência nas escolas

 

Considero fundamental discutir ainda hoje a respeito do conceito de inclusão, ou seja, o que o corpo docente das escolas regulares entende por inclusão escolar, considerando que a concepção de cada educador sobre o tema influencia a prática diária, bem como as abordagens para efetiva e qualitativa intervenção pedagógica junto ao aluno com deficiência intelectual.

 

As falas de alguns educadores sobre a inclusão de alunos nas classes regulares evidenciam uma tendência mais relacionada aos aspectos sociais, ou seja, à possibilidade do aluno com deficiência intelectual construir hábitos e habilidades aceitos socialmente pela comunidade a que pertence. Para alguns professores, estar com os outros, num espaço educacional acolhedor, com possibilidades de ampliação das construções sociais é fundamental para o universo de alunos que apresentam deficiência intelectual.

 

Os aspectos sociais, a interação com o outro, as trocas entre pessoas que se diferenciam, são relevantes no processo de individuação do sujeito e no processo de socialização durante a permanência do aluno na escola. É importante salientar, entretanto, que a inclusão do aluno na sala de aula e na escola, de forma efetiva e eficaz, envolve também o desenvolvimento cognitivo do sujeito a ser incluído.

 

Uma escola inclusiva pressupõe um espaço onde todos possam aprender independentemente de seus ritmos diferenciados. Essas realidades devem ser levadas em consideração no planejamento das intervenções pedagógicas. Como afirma Beyer (2005, p.69) “parte-se da premissa de que toda criança é capaz de aprender, desde que suas particularidades na aprendizagem sejam consideradas”.

 

Pensar em propostas educativas que garantam a construção da aprendizagem por todos os alunos, respeitando suas diferenças individuais e necessidades peculiares, é uma das funções básicas da escola. Carvalho (2003) comenta que, “uma escola de boa qualidade para todos, uma escola inclusiva, precisa estar preparada para receber todos na apropriação e construção do conhecimento (p. 75).”.

 

O processo de inclusão escolar, não pode cair no erro de “igualar” os sujeitos para atender ao acolhimento de todos na escola. Dessa forma, ter direito de acesso e receber condições de permanecer na escola não pode ser entendido como igualdade de características dos alunos, ou “a não identificação da criança e de suas necessidades na aprendizagem” (BEYER, 2005, p.62). Da mesma forma, o processo de inclusão não pode ficar atrelado e dependente do desejo e vontade do que o professor quer ensinar ou determinar sobre o que o sujeito deve aprender e sim, precisa pensar sobre o que o sujeito tem capacidade e possibilidade de aprender.

 

Seria importante que os professores pudessem ter uma visão do conceito de inclusão como o que nos traz Carvalho (2004) ao afirmar que:

 

Por inclusão estou me referindo ao acesso, ingresso e permanência desses alunos em nossas escolas como aprendizes de sucesso e não como números de matrícula ou como mais um na sala de aula do ensino regular. Estou me referindo à sua presença integrada com os demais colegas participando e vivendo a experiência de pertencer, isto é, estar no palco, sem ser herói ou vilão (p. 101).

 

2. Número de alunos em sala de aula: pressuposto para a qualidade educativa nas propostas inclusivas

O número excessivo de alunos gera nos professores sentimentos de desvalia, caracterizados ora pela sensação de incompetência, ora pela de impotência, em função do fato de não conseguirem atender a todos os alunos em suas necessidades, uma vez que uns exigem maior atenção do que outros e, consequentemente, demandando mais tempo do professor.

 

A literatura traz o número de alunos ideais numa faixa entre 20 a 25 alunos, contudo é importante ressaltar, que ambos os autores que fazem menção a quantidade de alunos em sala de aula, ou seja, Beyer (2005) e Baptista (2002), o fazem baseados numa realidade educacional que não é a brasileira. Em ambos os casos, o professor regular teria o apoio de um outro professor de educação especial, se não todo o tempo, conforme o número de alunos incluídos, pelo menos, boa parte da carga horária escolar. Construindo assim, uma nova proposta de atuação pedagógica. Realidade esta muito diferente da que existe em nosso país, onde o professor conta consigo mesmo, pelo menos por enquanto. Não há, nas escolas que realizam inclusão, o trabalho com bidocência como o modelo proposto por Beyer (2005).

 

Não há dúvidas de que a redução do número de alunos em sala de aula auxilia, e muito, a qualificação das intervenções pedagógicas e o estabelecimento das relações interpessoais, tão importantes quando lidamos com alunos com deficiência intelectual (BEYER, 2005). Afinal, a diminuição, do número de alunos em sala de aula facilita a aproximação entre professor e aluno, favorecendo o relacionamento entre ambos, bem como a interlocução necessária no processo de ensino e no processo de aprendizagem. Além de propiciar que o professor consiga detectar de forma mais qualificada as necessidades reais de cada aluno bem como, as diferentes formas de aprendizagem que os mesmos apresentam.

 

Existem já, em diferentes estados e cidades, resoluções que indicam o número de alunos com algum tipo de deficiência que devem estar incluídos na sala de aula regular, na tentativa de qualificar o processo de educação de todos os envolvidos. No Rio Grande do Sul, o Conselho Estadual de Educação através do Parecer 56/2006 indica que:

 

A escola comum, na constituição das turmas, pode incluir, no máximo, 3 (três) alunos com necessidades educacionais especiais semelhantes por turma, devendo ser admitida a lotação máxima de 20 (vinte) alunos na pré-escola, 20 (vinte) nos anos iniciais do ensino fundamental e 25 (vinte e cinco) nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Em se tratando de inclusão de pessoas com deficiências diferenciadas, admite-se, no máximo, 2 (dois) alunos por turma, sempre a critério da equipe escolar . 

Já o sistema municipal de educação de Porto Alegre, através da Resolução nº 013/2013, admitida pelo Conselho Municipal de Educação afirma que:

 

Art. 49 O número máximo de estudantes da educação especial por turma na educação infantil, no ensino fundamental comum, na EJA e no ensino médio deve levar em consideração a especificidade de cada estudante das diferentes idades de formação e as recomendações da assessoria responsável pela educação especial na SMED, sendo que: I - cada criança, adolescente, jovem e adulto da educação especial conta como dois estudantes no cômputo geral da turma; II - o número de crianças por faixa etária estabelecido no artigo 16 da Resolução 003/2001 e o número de estudantes estabelecido no artigo 9º da Resolução 008/2006 ambas do CME/POA, são referências para o cálculo acima.

Percebe-se então, que a apreensão dos professores quanto ao número de alunos também tem sido uma preocupação dos sistemas de ensino, que buscam soluções na tentativa de tornar efetiva a inclusão dos alunos com deficiência no sistema regular de ensino.

 

3.Recursos humanos e materiais para a efetivação do processo de inclusão escolar

Propor uma educação inclusiva, internacionalmente discutida, não é propor o barateamento da educação. A educação inclusiva não é econômica, requer diversos investimentos financeiros, já que supõe um espaço qualificado, estruturado sob diferentes dimensões conforme as necessidades de cada aluno, oferecendo condições de atender a todos.

 

A inclusão de todos numa escola envolve ações que devem ser assumidas pela coletividade escolar, em que os alunos com deficiência intelectual são acolhidos não só pelos professores que os atendem durante um determinado ano letivo, mas pelo contexto da escola. Um “projeto de inclusão escolar” não alcançará êxito se restrito ao empenho de um professor ou de um grupo da escola, pois em algum momento, o aluno precisará “sair das mãos” deste professor ou do grupo envolvido para avançar em outras dimensões da escolarização. E, não havendo, na escola, a continuidade das ações para concretização das idéias e propostas, todo o trabalho iniciado acaba sendo perdido e o aluno, por via de conseqüência, excluído.

 

Optar por uma proposta inclusiva supõe um desafio permanente que acompanhará os sujeitos da escola, nos sucessos e fracassos, nas idas e vindas da trajetória empreendida, nas importantes horas de estudo continuados e nas buscas constantes de respostas aos desafios que surgem cotidianamente. A inclusão de alunos com deficiência intelectual é um desafio, fundamentalmente, porque “confronta o (pretenso) sistema escolar homogêneo com uma heterogeneidade inusitada, a heterogeneidade dos alunos com condições de aprendizagem muito diversas” (BEYER, 2006a, p. 81).

 

Os recursos materiais são requisitos fundamentais para a qualificação do processo de inclusão escolar. Uma escola inclusiva precisa oferecer uma variedade de atividades que requerem recursos materiais para atingir os objetivos propostos. São necessários recursos materiais diversificados correspondentes às temáticas para o ensino e a aprendizagem dos alunos. Os materiais instigadores e desafiadores fazem parte do planejamento de ensino de cada professor para uma aprendizagem significativa, o que não ocorre se utilizado, continuamente, apenas, quadro, giz, caderno e lápis.

 

Os recursos humanos qualificados nas diferentes áreas de atuação são também aspectos que vem a somar aos já existentes nas escolas, ou não, já que irão qualificar o trabalho e oferecer apoio ao corpo docente e aos alunos. Os professores do ensino regular que atendem alunos com deficiência intelectual, sentem a necessidade de apoio de um profissional de educação especial, que tenha formação específica na área. Essa necessidade reforça a idéia abordada por Beyer (2005) de que uma educação inclusiva necessita do olhar de, no mínimo, dois profissionais, o que se denomina chamar de Sistema de Bidocência.

 

4. A família: requisito essencial, também, para o êxito do processo de inclusão

Poder compreender o funcionamento das famílias que têm um filho com deficiência intelectual deveria estar na pauta dos aspectos imprescindíveis para efetivar a inclusão em cada escola. Na busca desse entendimento, é preciso resgatar e identificar o “lugar” que o aluno ocupa na sua família e qual papel ele assume na engrenagem do cotidiano familiar.

 

É preciso que se tenha em mente que se o nascimento de uma criança com deficiência intelectual não é fácil para uma família, a busca de escolas, para iniciar o processo de escolarização, também não o é. As famílias ficam expostas, nesse momento, às próprias fragilidades, aos seus medos, fracassos, anseios e desejos. Como nos afirma Farenzena (1999):

 

Para muitas famílias, o momento da busca de escolarização para um filho portador de deficiência mental se constitui numa batalha sem término, sem segurança e, muitas vezes, sem esperança. Essa busca do direito a uma escola, uma educação para todos, se torna, entretanto, um mundo estranho, com regras e práticas difíceis de serem compreendidas, tanto no âmbito familiar como institucional (p. 139).

 

É necessário compreender que a entrada na escola dos alunos com deficiência intelectual gera nos pais sentimentos conflitantes como o desejo sim de escolarização e alfabetização, favorecendo uma inserção cultural numa sociedade extremamente letrada como também o receio do fracasso do processo de inclusão em que pode ficar explícito a diferença entre seus filhos e os colegas da escola regular (MARTINS, 2011). Esses sentimentos contraditórios da família podem refletir no comportamento do aluno.

 

Portanto, realizar uma escuta dessas famílias, discutindo seus desejos e anseios, seus medos e sonhos, pode facilitar o processo inclusivo.

 

5. Currículo escolar: desafio nas propostas de inclusão escolar

 

A flexibilização de tempo, do currículo e das formas de avaliação favorecem a adaptação e o sucesso do aluno incluído no ensino regular. Entende-se flexibilização como: “a capacidade do professor de modificar planos e atividades à medida que as reações dos alunos vão oferecendo novas pistas” (CARVALHO, 2003, p. 65). No entanto, percebe-se que faz parte do imaginário dos professores o conceito de que flexibilizar o currículo é simplificá-lo, suprir conteúdos, reduzi-lo ao máximo, até chegar somente às questões mais simples, limitando as possibilidades de aprendizagem do aluno com necessidades educacionais especiais.

 

É imprescindível pensar que o currículo numa escola inclusiva precisa estar reformulado buscando alcançar a todos os alunos, ou como afirmam Almeida, Martins e Jesus (2012):

 

Um currículo inclusivo baseia-se no principio de que as boas práticas são apropriadas a todos os alunos, de forma a conseguir-se uma aprendizagem significativa para cada aluno. Dessa forma, é indispensável que o docente possua conhecimentos que lhe permitam ensinar, na mesma classe, alunos com capacidades diferentes e com níveis diferenciados de conhecimentos prévios (p.65).

 

Valorizar as condições e possibilidades cognitivas e emocionais dos alunos com deficiência; reconhecer e valorizar os conhecimentos que são capazes de produzir; utilizar práticas pedagógicas adequadas que favoreçam a construção das representações mentais dos temas abordados, dando significado a cada conteúdo estudado. Trabalhar o conteúdo de uma maneira mais concreta, favorecendo o conhecimento através de experiências reais, é sinal de respeito à diferença existente na sala de aula.

 

Desta forma, efetivamos a principal finalidade do sistema de ensino que é conduzir todos os alunos a atingirem os objetivos fundamentais da aprendizagem. Isso só poderá acontecer se abrirmos mão de uma pedagogia do ensino e adotarmos uma pedagogia da aprendizagem, procurando investigar as reais possibilidades de cada aluno para aprendizagem, descobrindo as melhores condições em que estas aprendizagens podem acontecer. Ou como diriam Almeida, Martins e Jesus (2012):

 

Assim, em vez de utilizar um ensino coletivo, conduzido passo a passo e com sequências de aprendizagem organizadas previamente, o professor deverá, por um lado, compreender a forma como cada aluno constrói e desenvolve a sua aprendizagem e, por outro lado, proporcionar orientações individualizadas a partir das dificuldades que o aluno apresenta (p. 65).

 

Aspectos complementares que circundam os alunos com deficiência intelectual na escola regular.

 

A formação dos professores é um dos aspectos que influenciam diretamente o sucesso da proposta de educação inclusiva nas escolas regulares. Muitas vezes, os professores participam de eventos que objetivam a formação continuada esperando “receitas mágicas”, que, ao serem aplicadas, resultarão em milagrosa superação das dificuldades de cada aluno. Ao tratar-se de inclusão escolar, não há receitas, nem mesmo trajetórias organizadas a serem seguidas. Há, sim, um pensar sobre o processo de inclusão e, a partir dessa reflexão, a reconstrução de propostas curriculares que incluam questões sobre o ingresso e permanência, com qualidade educacional, de alunos com deficiência, respeitadas as diferentes realidades de cada sujeito. É preciso (re)conhecer o aluno e sua deficiência como um valor e não um defeito ou empecilho, buscando trabalhar a partir de suas potencialidades.

 

A formação é importante não somente para dar suporte aos professores frente à demanda da inclusão, mas também para que não se sintam impotentes com a nova situação.

 

No entanto, o mais importante não é só oferecer o embasamento teórico ao professor, os princípios inclusivos, e sim trabalhar com eles a importância de se desenvolver um projeto inclusivo nas escolas, e o reflexo que isso acarretará nos sujeitos que apresentam necessidades especiais (BEYER, 2005).

 

Assim a necessidade de formação é intrínseca ao projeto inclusivo e deve ser estendida a toda a equipe escolar (equipe diretiva, professores e os que trabalham na infra-estrutura da escola) já que a qualificação da equipe de profissionais é um aspecto de suma importância quando falamos em inclusão.

 

A propósito disso, as reuniões de formação oferecidas aos professores e à equipe que atua na escola devem abranger estudos sobre as características cognitivas, sociais, emocionais, culturais e psicológicas do ser humano, bem como as suas condições psíquicas para a aprendizagem. Também é fundamental que se realizem estudos sobre o desenvolvimento ‘atípico’ e características de algumas ‘patologias’ ou síndromes, visando à compreensão da história e do comportamento de alguns alunos.

 

Para que a formação tenha efeitos positivos, são necessários sujeitos que tenham o desejo de participar do projeto. Sobre esse aspecto, Beyer (2006a) salienta a necessidade da vontade do professor querer participar:

[...] não entendo que seja pelo viés da obrigatoriedade do projeto inclusivo, como acontece em nosso país, que construiremos uma pedagogia inclusiva positiva e também efetiva do ponto de vista de sua implementação nas escolas. É pelo convencimento gradual, por meio da exposição convincente de todos os aspectos que constituem as principais bases (filosóficas, psicológicas, sociais e pedagógicas) do projeto inclusivo, que os professores e educadores em geral poderão se tornar peças estratégicas deste jogo fascinante que se chama educação inclusiva (p.81).

 

A “não-aprendizagem” na escola regular como justificativa para o fracasso do aluno com deficiência intelectual

 

Acredito que a não permanência dos alunos com deficiência intelectual nas salas de aula, na perspectiva dos professores destas escolas do ensino regular, está vinculada à própria “deficiência”, ou seja, a problemática recai sobre as condições do aluno que consideram “não acompanhar” o que o ensino regular propõe, e, cujas determinantes são as condições cognitivas, geralmente, comprometidas organicamente.

 

Esse pensamento reflete o “lócus” em que se encontram muitos professores, ainda presos a um paradigma médico-clínico. Paradigma este que traz como marca fundante a patologia, as dificuldades que o aluno apresenta, a incompletude que existe no sujeito (BEYER, 2005). Cabe ressaltar que esse aluno tem seu desenvolvimento sempre comparado a outro aluno que não apresenta nenhuma deficiência e/ou dificuldade. Na visão dos professores, são alunos que estão aquém do esperado nas construções cognitivas e no desenvolvimento de valores. Os avanços e conquistas de cada aluno nas aprendizagens não são constatadas, pois o olhar do professor não está voltado para esse sujeito, mas para um parâmetro de resultados que se espera de todos. A propósito disso, Beyer (2005) afirma:

 

Cabe lembrar que é característica do modelo médico a projeção do fracasso sobre a própria criança, ou seja, ela não seria supostamente capaz de aprender na escola regular por causa da sua deficiência ou da sua limitação individual (p. 22).

 

Em função de que o processo de aprendizagem desses alunos é muito diferenciado, exigindo atenção constante do professor, o que se obtém como resultado, muitas vezes, é a exclusão deste alunado, que permanece no espaço físico, mas que é deixado a distância e à margem do processo educacional.

 

Dessa forma, as diferentes patologias apresentadas pelos alunos com deficiência intelectual matriculados na escola regular desafiam os professores. Muitos profissionais ficam confusos e assustados frente a alunos que, segundo eles, não “rendem dentro do tempo esperado”.

 

Convém lembrar que, muitas vezes, o fracasso dos alunos é resultado de uma série de situações que envolvem vários aspectos e não só de suas características cognitivas. As características cognitivas de cada aluno precisam ser levadas em conta, sim, mas como parte de um contexto de valorização, paciência, tolerância e incentivo, para uma interlocução entre toda classe que essencialmente se caracteriza pela diversidade. É preciso entender que: “a igualdade educacional não pode ser obtida, oferecendo-se o mesmo a todos os alunos” (GORTÁZAR, 1995, p. 324).

 

Observa-se que o mais difícil para muitos professores é conseguir realmente pensar e olhar a deficiência como um aspecto que não impede aprendizagens e que, não limita o alcance de novas conquistas. É preciso lembrar, sempre, que “a deficiência é uma situação de vida que, ainda que constituindo um estado permanente, não deve definir os atributos individuais” (BEYER, 2006b, p. 9).

 

CONCLUSÃO

 

É preciso mudar a concepção dos professores frente à inclusão e, para isso, a mudança precisa ser profunda, não só nas atitudes, mas nos mecanismos que geram determinadas atitudes. Essa mudança de atitude frente à proposta inclusiva demanda a implicação do próprio educador, demanda que o mesmo assuma incluir-se na proposta.

 

Igualmente importante é a realização de um levantamento sobre o que pensam e sentem os educadores, como percebem a questão da deficiência, como enfrentam as ações do dia-a-dia em sala de aula, qual o papel assumido pelos alunos com deficiência no imaginário desses professores, que atitudes dos professores prevalecem em relação aos alunos com necessidades educacionais especiais. Através deste tipo de ação, pode-se pensar/analisar as atitudes dos professores sob uma ótica que pode traduzir os mais diversos sentimentos, desde piedade, tolerância, obrigação, protecionismo até a crença na potencialidade e capacidade de cada sujeito, para além das deficiências.

 

É preciso oportunizar aos professores, momentos em que possam fazer uso da palavra para desabafar suas angústias, seus sentimentos. Reuniões de professores em que a pauta seja inicialmente a “escuta dos sentimentos sobre os alunos”, para que, a partir dessa escuta, possam ser trabalhadas algumas reflexões mais profundas.

Percebe-se que os sentimentos dos professores em relação ao processo de inclusão escolar é o motivo, na maioria das vezes, da desestabilização emocional dos mesmos quando convocados a atuar com alunos que apresentam deficiência intelectual, refletindo estes sentimentos, diretamente na sua prática pedagógica.

 

A questão da formação é ampla, e exige investimento financeiro da instituição educacional assim como investimento pessoal do educador em relação ao seu tempo para ler, estudar, refletir. Investir na formação pessoal e profissional demanda escolhas de linhas teóricas e filosóficas que fundamentam o “ser” da escola.

 

A escola que se pretende inclusiva expõe claramente as problemáticas inerentes ao desenvolvimento curricular, buscando, com isso, evitar os pré-conceitos mascarados, escondidos, “não ditos”, que influenciam as atitudes e as falas dos professores, e, por via de conseqüência, o processo de ensino e de aprendizagem. A paralisação e/ou cristalização de concepções e das práticas homogêneas, são, muitas vezes, disfarçadas sob o manto da inclusão. Uma pseudo inclusão de alunos com deficiência intelectual se limita ao estar fisicamente ocupando um determinado espaço, para o alcance de uma suposta integração social, baseada no convívio esporádico de semelhantes com suas diferenças.

 

Percebe-se o quanto é importante o conhecimento do professor em relação aos seus alunos, para identificar as adaptações que são necessárias. Essas modificações serão realizadas pelos professores de forma espontânea, ou organizadas previamente, para que possam atender à necessidade real de cada aluno incluído e, também, dos outros que não apresentam nenhuma deficiência ou necessidade aparente.

 

Em relação à família, a escola que se propõe a assumir, implantar e implementar a proposta de inclusão escolar de alunos com deficiência intelectual tem papel importante junto às famílias. É preciso construir momentos de escuta para compreender as angústias que tomam conta do dia-a-dia dos familiares, as necessidades e novas possibilidades de relacionamentos, para que, então, a proposta de uma educação inclusiva tenha sucesso.

Inúmeros teóricos, afirmam que, uma vez legislado, as escolas estão obrigadas a assumir todos os alunos, seja qual for a deficiência que apresentam, atendendo aos princípios de uma escola para todos. Outros, acreditam ser importante o direito de escolha, dos professores de participar, ou não, da proposta, corroborando a idéia de que, se os professores são forçados a participar, isso por si só já representa um fator de desvantagem e, até mesmo, de fracasso. (WOCKEN apud BEYER, 2005).

 

Constatou-se que a inclusão escolar de alunos com deficiência intelectual ocorre, de forma efetiva, nas etapas iniciais da educação formal (educação infantil). A partir do momento que as etapas, séries ou ciclos avançam e a necessidade do uso do potencial cognitivo de cada aluno é exigido, a correspondência da exigência não é a esperada pelos professores, vão criando-se obstáculos à inclusão dos alunos no ensino regular. Os alunos que apresentam um quadro com déficit cognitivo acentuado tornam-se uma incógnita para o profissional que atua no ensino regular. A partir do momento que são exigidas do aluno as habilidades para ler, escrever e as habilidades matemáticas, instala-se os primeiros sinais da dificuldade e muitas vezes, acaba-se vivenciando a exclusão, com a saída do aluno da escola, ou a exclusão que se instala na suposta inclusão.

 

Esse ‘não avanço’ cognitivo gera uma grande ansiedade no professor, centrando sua ação na avaliação constante do aluno, suas condições pedagógicas para freqüentar a escola regular, na certeza de que a problemática é inerente à deficiência. Essa atitude impede que o professor reavalie a sua prática e as condições da escola como um todo para o pleno desenvolvimento do processo de inclusão escolar. Assim, muitas vezes, o professor elege o fracasso do aluno como decorrência de uma deficiência intelectual, sem contudo, reconhecer as possibilidades de aprendizagem numa dinâmica de ensino diferenciada.

 

Termino afirmando que é imprescindível que a escola assuma o conceito de “redução numérica” como uma proposta de qualidade de ensino nas salas de aula. Quando se busca a inclusão escolar de qualidade, a redução numérica dos alunos em salas de aula é um dos passos importantes nesta caminhada que vai sendo construída neste país, qualificando o processo de aprendizagem e facilitando as interações entre os sujeitos que frequentam as escolas inclusivas.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, Ana Susana; MARTINS, Maria Helena; JESUS, Saul Neves. Da Educação Especial à Escola Inclusiva. In: STOBÄUS, Claus Dieter; MOSQUERA, Juan José Mourinõ. Educação Especial: em direção à educação inclusiva. 4 ed. ver. e ampliada. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012

 

BAPTISTA, C. R.; BOSA, C. Autismo e educação: atuais desafios. In: BAPTISTA, C. R.; BOSA, C. (Orgs.) Autismo e Educação. Reflexões e propostas de intervenção. Porto Alegre:Artemed, 2002. P. 11 – 20.

 

BAPTISTA, C. R.; TEZZARI, M. L. Vamos Brincar de Giovani? A integração escolar e o desafio da psicose. In: BAPTISTA, C. R.; BOSA, C(Orgs.). Autismo e Educação. Reflexões e propostas de intervenção. Porto Alegre:Artemed, 2002. P. 145 – 156.

 

BRASIL. Declaração Internacional de Montreal sobre Inclusão, aprovada em 06 de outubro de 2004. Brasília: 2004

 

BEYER, H. O. A Educação Inclusiva: ressignificando conceitos e práticas na educação especial. Inclusão: Revista da Educação Especial. Brasília: Secretaria de Educação Especial, n. 02, p. 8 – 12, 2006b.

 

__________. Da Integração Escolar a Educação Inclusiva: Implicações Pedagógicas. In: BAPTISTA, C. R. (Org.) Inclusão e Escolarização: múltiplas perspectivas. Porto Alegre: Editora Mediação, 2006a. P. 73 – 81.

 

__________. Inclusão e avaliação na escola de alunos com necessidades educacionais especiais. Porto Alegre: Editora Mediação, 2005.

 

CARVALHO, R. E. Removendo barreiras para a aprendizagem: educação inclusiva. 3 edição. Porto Alegre: Editora Mediação, 2003.

 

__________Educação Inclusiva com os pingos nos is. Porto Alegre: Editora Mediação, 2004.

 

DELORS, J. Educação um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. 4 edição. São Paulo: Editora Cortez, Brasília, DF: MEC: UNESCO, 2000.

 

FARENZENA, Z. M.F. A Integração Social das Diferenças e as Diferenças na Integração Social:histórias dos (des)caminhos na vida cotidiana. Porto Alegre: PUCRS, 1999. 294 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social), Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Faculdade de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999.

 

GORTÁZAR, A. O professor de apoio na escola regular. In: COLL, C. (Org.). Desenvolvimento Psicológico e Educação: Necessidades Educativas Especiais e Aprendizagem Escolar. Tradução de: Marcos A. G. Domingues. Volume 3. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1995. P. 322 – 335

 

MARTINS, Lúcia de Araújo Ramos [et al.]. Inclusão: compartilhando saberes. 5. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

 

ROZEK, Marlene. A formação docente: Tensões e possibilidades. In:ROZEK, Marlene; VIEGAS, Luciane Torezan. Educação Inclusiva: políticas, pesquisa e Formação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.

 

STOBÄUS, Claus Dieter; MOSQUERA, Juan José Mourinõ. Professor, personalidade saudável e relações interpessoais: por uma educação da afetividade na educação especial. In: STOBÄUS, Claus Dieter; MOSQUERA, Juan José Mourinõ. Educação Especial: em direção à educação inclusiva. 4 ed. ver. e ampliada. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.

 

ANEXO 1

 

Diferentes dimensões da "não-inclusão"


 

 

 

 


AUTISMO: Ecolalias, resistências e as estereotipias sociais



¹Daiane Duarte Lopes

² Roberto Rosa de Matos

RESUMO

Este artigo visa possibilitar um olhar para o sujeito que possui o Transtorno do Espectro Autista - TEA - como ator social, repleto de potencialidades, enquanto agente ativo e incluso. Da importância desse agente de interação e  transformação social, frente a um existir psicopatologizado pelo diagnostico de transtorno do espectro autista, que muitas vezes limitam suas participações na sociedade. Propõe a reflexão aos sintomas e estereótipos atribuídos a esses sujeitos, ao passo que essa forma de pensar o autismo se faz tóxica, não apenas para esse sujeito, mas para sociedade num todo, que deixa de se beneficiar com suas contribuições.

Palavras-chave: Autismo; sintoma; interação social; inclusão.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O autismo, atualmente denominado como Transtorno do Espectro Autista – TEA, se caracteriza por sua singularidade no desenvolvimento humano. Estabelece distinção em diferentes instâncias, com alterações mais acentuadas em três áreas: nas interações sociais, nas modalidades de comunicação e nos comportamentos (American Psychiatric Association - APA, 2013).

 

¹Psicóloga, psicopedagoga, especialista em AEE e gestão de projetos educacionais, coordenadora na Clínica D. W. Winnicott em Porto Alegre, RS.

²Educador Físico, pedagogo, psicopedagogo, especialista em AEE e gestão educacional, professor na rede municipal da cidade de Guaíba, RS.

Ao longo da vida, a pessoa com TEA, tende a apresentar atipicidade no desenvolvimento dos padrões esperados para a idade maturacional e em sua relação com  estímulos e ao contexto ao qual está inserida.  Estes aspectos são únicos e se manifestam de maneiras subjetivas e específicas, variando em grau de influência na vida de cada sujeito, o que acarreta em modos bem distintos de existir de uma pessoa com autismo para outra.

 

A recente especificação do autismo, enquanto uma conjuntura de espectros, realizada pelo manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM- V, busca categorizar o autismo através de suas características singulares e colocando em evidência sua conceituação enquanto deficiência.  Sendo, desta maneira, importante destacar que o conceito de deficiência acompanha na atualidade uma transição para o reconhecimento e a expansão das possibilidades de existir de cada pessoa para além de normas e padrões específicos.

 

O conceito de normal, sugestiona a ideia de alguém ou algo que segue as normas. Sob o olhar de Gaudenzi e Ortega (2016) o conceito de deficiência pode ser visualizado em conformidade com a normatividade, escapando das lógicas enclausurantes da normalidade. Normatividade apoia a ampliação da visão do conceito de deficiência quando se refere ao desenvolvimento de autonomia em sincronicidade com a subjetividade e especificidades de cada sujeito.

 

Nesse sentido, ao que se refere ao autismo ou TEA, os padrões sociais de funcionamento são caracterizados principalmente por suas interações sociais únicas. Que podem ser notadas nas manifestações não padronizadas de aprendizagem, através de insistentes interesses por assuntos específicos. Na inclinação a rotinas e até mesmo nas dificuldades em modos típicos de comunicação e maneiras particulares de processar as informações sensoriais. Todas essas características atuam como diretrizes para a sua categorização e conceituação. Assim a reflexão e problematização de aspectos relacionados à neurodiversidade se colocam como urgentes para pensarmos a inclusão social, para além de um “estar entre”, mas como oportunidade de escuta e construção de territórios para as diferenças.

 

A lei 12.764 de 27 de dezembro de 2012 que “Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa Autista” (BRASIL, 2012). E o “Estatuto da Pessoa com Deficiência”, instituído a partir da lei 13.146, de 06 de julho de 2015 (BRASIL, 2015), promove que os direitos das pessoas com deficiência devem ser assegurados em conformidade com suas singularidades. Estas diretrizes estão fundamentadas nos princípios da universalidade e da solidariedade, sendo que para isso o Estado é o responsável por propiciar minimamente condições para que as pessoas com deficiência possam de fato se inserir na sociedade, com participação plena e efetiva, onde seja possível viver com independência e dignidade (BRASIL, 2015). 

 

Conforme o relatório mundial sobre a deficiência (OMS, 2012), as pessoas com deficiência representam 15% da população mundial, o que acarreta em cerca de um bilhão de sujeitos. Dessa forma é urgente e importantíssima a efetivação da perspectiva das políticas públicas da atualidade como ferramentas nas quais as pessoas possam conquistar espaço para existir. Sem ter que se limitar por barreiras arquitetônicas, estruturais, sociais, culturais ou econômicas que os coloquem em desvantagem perante outros que não possuem deficiências, denominados teoricamente como “típicos”.

 

No Brasil, nas últimas pesquisas realizadas pelo ministério da saúde estimasse que a cada 54 pessoas, 01 possui o diagnóstico de transtorno do espectro autista. No entanto, como consta no observatório do plano nacional de educação - PNE, “o Censo Demográfico não faz nenhuma referência à população com transtornos do espectro autista” ao que se refere à participação destas pessoas em espaços educacionais ou em espaços que possibilitem o seu desenvolvimento, ainda que estes aspectos estejam nas metas a serem cumpridas entre os anos de 2014 e 2024 (OBSERVATÓRIO PNE, 2018).

 

Então podemos pensar: “Que espaços sociais são possíveis para as pessoas com autismo?”

 

A organização de dispositivos de amparo, de presença e de escuta às pessoas com TEA devem atuar como amplificadores de suas vozes.  Promovendo uma genuína escuta das pessoas com autismo, e não somente analisa-los a partir do discurso dos seus cuidadores. Ecoando sua realidade, suas perspectivas, suas lutas, suas buscas por espaço, por territórios onde possam ser reconhecidas socialmente através de suas diferenças. Podendo estas diferenças atuarem como potencializadoras dessa noção de singularidade.

 

A partir destas considerações é possível pensar na interação “eu e outro” evocando uma multivocalidade como princípio da intersubjetividade. Onde o coletivo se faz dependente da pessoa como indivíduo, assim como o sujeito se constrói através do coletivo (KASTRUP; ESCÓSSIA, 2005). 

 

Desta forma, ao pensar nas pessoas com TEA, as singularizações também não se restringirão ao campo individual. Elas serão produzidas a partir do surgimento de um sujeito político que se anuncia como potência de manifestação e na constituição de processos instituintes. Arendt (2010) fala sobre a singularidade do “quem” de cada um, que se manifesta sob a condição do estar com os outros, implicando a “pluralidade humana”. Neste caso, a condição da pluralidade, fala, em termos políticos, onde não se pode pensar o ser humano senão como um ser com os outros. E não somente como um ser entre os outros.

 

...é possível pensar a manifestação política da singularidade sem reduzi-la a qualquer forma de individualismo, ao mesmo tempo em que também é possível pensar o ser coletivo, para além de toda fantasmagoria comunitária fundada na partilha comum de identidades definidas de maneira substancialista” (ARENDT, 2010, pg. 9-10).

 

Os sujeitos se constituem na experiência social, em seus trajetos singulares. Assim, podemos pensar o existir enquanto pessoa com TEA como campos de experienciação.

 

Para Guattari (1990), o sujeito é permanência, duração, persistência no tempo, um conjunto de singularidades e afirmações, crenças decorrentes de hábitos que o qualificam e lhe conferem “uma identidade”, por definição provisória, que será passível de transformações, assim que mudarem suas experiências.

 

Nesse sentido, não precisamos enclausurar o autismo no singular, restrito a um jeito de ser, preso a critérios que impõem uma única direção e portanto um único destino. O TEA é uma manifestação plural e engloba “autismos”. Pois, ainda que embora exista uma caracterização, esta não é estática. Uma mesma pessoa pode manifestar o TEA por infinitas possibilidades dentro das áreas atingidas. O diagnóstico esta manifesto em um sujeito, um ser que não se reduz de forma individual, ele esboça uma configuração subjetiva, circulando em intensidade como combustível para novos encontros, produtor de heterogeneização, sobrevoa diferentes territórios existenciais.

 

Todo sujeito é em si um Ser em movimento. Capaz de compor nos corpos o inusitado, a partir do encontro com o outro, definindo em cada sujeito uma lista de afetos e devires em uma multiplicidade de acontecimentos que nunca cessam. Assim, todo devir, se dá no encontro e assim como no acaso da experiência absorvida (DELEUZE; GUATTARI, 1997).

 

Co((inclusões))

Um olhar sobre as vivencias e o existir diante da neurodiversidade das pessoas com transtorno do espectro autista – TEA, implica uma urgência da necessidade de dar voz a esta minoria social, que hoje - ironicamente - constitui a maior minoria. E que é  ainda mais marginalizada e distanciada do acesso aos seus direitos e da participação em políticas públicas que atendam de maneira equânime a todos.

 

Nesse sentido, todo terapeuta, professor, profissional e rede de apoio familiar de pessoas com TEA, preferivelmente, deve se propor como um espaço para o rompimento dos estigmas relacionados ao modo de ser e estar no viver destas pessoas. Buscando um olhar despatologizado e amplamente integrado as singularidades de cada ser. Quem sabe este olhar, sobre as pessoas com autismo, “não vistas”, “não ouvidas”, “silenciadas” pela falta de interesse cientifico, político, econômico e social, possa atrair outros olhares, outras escutas e possibilitar a abertura de transformações sociais?

 

Tais questões serão postas sob luzes, tons e formas variadas, impreterivelmente conduzidas a partir de lentes que permitam lançar um olhar sobre esse panorama social. Que se propõe latente na atualidade, inquietando e se colocando de modo proeminente diante da sociedade atual. Possibilitando o estremecimento de certezas, abrindo para a criação de novos horizontes.

 

Desta maneira se faz interessante refletir, buscando os traços de paisagens psicossociais produzidas por esses sujeitos, objetivando encontrar pontos de convergência e afinidades, explorando a potência do instante em que se desdobram. Como alguém que observa a execução do contorno de uma pintura que está sendo criada ao mesmo tempo em que surgem os movimentos de transformação. No entendimento que o modo como um existir é pensado modifica a maneira de agir sobre ele, entender as suas potencialidades, as suas visões de mundo, assim como as visões daqueles que convivem com quem está no autismo pode ser, no mínimo, libertador.

 

Viver com autismo, ou com qualquer outra neurodiversidade aponta um caminho, uma direção pela qual serão analisados diferentes pontos de vista, mas sob hipótese alguma deve implicar em sentenças sobre até onde a pessoa pode ir. Com apoio, compreensão, respeito e afetos, somente a pessoa com TEA poderá trilhar seu caminho e buscar superar o que precisar ser superado.

 

ABSTRACT

This article aims to allow a look at the subject that has Autistic Spectrum Disorder - ASD - as a social actor, full of potentialities, as an active and included agent. The importance of this agent of interaction and social transformation, facing a psychopathological problem by the diagnosis of autistic spectrum disorder, which often limits their participation in society. It proposes a reflection on the symptoms and stereotypes attributed to these subjects, while this kind of thinking or autism is toxic, not allowed to the subject, but to society at all, which leaves the beneficiaries with their contributions.

Keywords: Autism; symptom; social interaction; inclusion.

 

 

 

 

Referencias

 

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